1É difícil encontrar um político que consiga resistir à propaganda quando sabe que a sua imagem ficará associado a algo que é histórico. O facto de não ser o responsável sobre o acontecimento que é objeto da propaganda nunca foi nem será impedimento para qualquer político que se preze.

Vem isto a propósito do início do processo de vacinação contra a Covid-19 — um processo que representa uma grande esperança para a humanidade derrotar o ‘bicho’ mas que em Portugal se tornou um espetáculo deprimente de propaganda pura e dura com Marta Temido como protagonista.

Desde o autêntico show off da ministra a acompanhar a chegada das primeiras 9.750 doses da vacina da Pfizer para se fazer fotografar com um frasquinho na mão, passando pelo lado parolo das selfies dos responsáveis do Ministério da Saúde junto ao camião que transportou as doses desde a Bélgica e acabando na tragicomédia de se revelar publicamente o local supostamente secreto onde as vacinas vão ficar armazenadas — foi tudo mau de mais para um acontecimento que, repete-se, só devia ser encarado como extremamente positivo.

Ainda me recordo como o PS de Guterres criticava as cerimónias de fita e tesoura de inauguração de obras públicas que os governos de Cavaco Silva faziam por todo o país nos anos 90. Ou como, mais tarde, o mesmo Guterres inaugurou a Ponte Vasco da Gama com um super mega almoço em cima do tabuleiro da ponte patrocinado por uma marca de detergente. Ou ainda como Sócrates fazia cerimónias luxuosas para assinar contratos de construção de PPP rodoviárias. O PS sempre foi especialista na propaganda e no marketing político.

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2 Com o primeiro-ministro isolado em São Bento, Marta Temido seguiu todos estes maus exemplos para se por à viva força na fotografia do primeiro português vacinado. Tudo para fazer inverter a sua impopularidade que deriva da incompetência, falta de planeamento e cegueira ideológica com que o seu ministério tem lidado com a crise pandémica.

Utilizar o processo de vacinação como instrumento de propaganda é politicamente desprezível. Mas, acima de tudo, é mais uma das muitas manobras em que António Costa se especializou desde 2015.

A chegada da vacina da Pfizer — assim como de qualquer outra vacina que vai chegar contra a Covid-19 — deve-se exclusivamente à Comissão Europeia. Foi o órgão liderado por Ursula Von der Leyen quem centralizou a compra de vacinas para os mais de 500 milhões de cidadãos que fazem parte da União Europeia — e não os governos nacionais.

Se Portugal tentasse comprar qualquer vacina sozinho, muito provavelmente as mesmas chegariam muito mais tarde ao nosso país devido à reduzida importância económica do nosso país no contexto da União Europeia. Portanto, a administração da vacina da Pfizer ao mesmo tempo em todos os países do espaço comunitário é, acima de tudo, uma grande vitória do projeto europeu — e não dos governos nacionais.

3 Apesar dos comentadores televisivos apoiantes do Governo e dos ex-assessores dos executivos socialistas que andam pelas redes sociais a atacar quem ousa criticar António Costa dizerem o contrário, a verdade é que as opções seguidas para o primeiro grupo de vacinados voltaram a demonstrar que o plano de vacinação é feito em cima do joelho.

Basta ler com atenção as declarações ao Expresso dos bastonários das ordens dos médicos (Miguel Guimarães) e enfermeiros (Ana Rita Cavaco) para percebermos que não havia critérios pré-estabelecidos para determinar quem era vacinado — uma questão essencial quando estamos a falar de um universo de mais de 100 mil profissionais de saúde para apenas 79.950 doses que vão chegar até à próxima 3.ª feira. Na realidade, foi tudo chutado para canto, deixando a responsabilidade aos hospitais para decidirem como entendessem.

Na prática, cada um dos cinco hospitais públicos perguntou aos respetivos funcionários quem queria ser vacinado e tentou dar uma ordem de prioridade a quem estava interessado. Ou seja, não foram estabelecidos critérios para as categorias e grau de exposição dos profissionais de saúde. Na prática, isso fez com que até as senhoras da limpeza fossem primeiro vacinadas do que médicos e enfermeiros de serviços considerados não prioritário.

Acresce a tudo isto o desprezo — mais um dirigido ao setor privado — a que o Ministério da Saúde liderada por Marta Temido votou os 15 mil profissionais de saúde que trabalham em hospitais privados que atendem 4 milhões de portugueses e que têm sido relevantes para tratarem doentes não Covid. O mesmo aconteceu também com os técnicos dos laboratórios privados que fazem mais de 40% dos exames. No caso dos hospitais privados, a respetiva associação ainda está à espera de uma resposta do Governo a uma carta que enviou no início de dezembro.

4 Por outro lado, é importante dizer que o sucesso que o Ministério da Saúde começou a apregoar ao início da noite deste domingo, com mais de quatro mil vacinados, não pode levar a excessos de euforia. Começar o processo de vacinação em hospitais públicos, é um passo relativamente fácil e seguro face às condições logísticas existentes nos principais hospitais do país.

A mensagem que se pretende passar — de grande confiança dos profissionais de saúde na vacina — é muito positiva para combater a desinformação e a ignorância que grassa nas redes sociais.

Contudo, não se percebe como foi possível adiar os maiores de 80 anos para a segunda fase.

Ou melhor, os argumentos técnicos apresentados por Manuel Carmo Gomes, epidemiologista da Comissão Técnica de Vacinação, fazem sentido: os idosos com mais de 80 anos apenas ocupam 9% das camas do cuidados intensivos e existem dúvidas sobre a eficácia da vacina da Pfizer acima daquela idade. Mas não se compreende como é que os técnicos conseguiram levar a sua avante quando o primeiro-ministro António Costa tinha prometido a 27 de novembro que tal não aconteceria.

Depois de Pedro Nuno Santos desafiar Costa, agora são os técnicos da Comissão Técnica de Vacinação a descredibilizarem as garantias dadas pelo primeiro-ministro.

Outra questão será vacinar os residentes em lares e respetivos profissionais ou até mesmo os profissionais das Forças Armadas, de forças se segurança ou pessoas com 50 ou mais anos com diversas patologias pré-determinadas. Será necessário, como aconteceu por exemplo no Reino Unido e na Alemanha, enviar brigadas de reação rápida aos lares e transportar as vacinas para os centros de saúde. E aí sim é que se colocará o verdadeiro problema logístico, com todas as especificidades técnicas que a vacina da Pfizer acarreta — como a questão da refrigeração.

Se somarmos a isso o facto de as 392 mil vacinas que vão chegar até ao final de janeiro serem claramente insuficientes para vacinar os cerca de 950 mil portugueses que fazem parte do primeiro grupo prioritário — então podemos concluir que o processo de vacinação será muito longo e irá marcar a vida do seu Governo.

5 O que vimos do Governo no combate à pandemia é um exemplo paradigmático do que foi e será sempre um Executivo Costa: a fazer pesca à linha, com uma visão ideológica que tem o Estado como único vector, ótimo na propaganda e no marketing mas simplesmente incompetente em resultados objetivos.

Como já escrevi aqui, o futuro político de António Costa depende muito do sucesso do programa da vacinação. Mas mesmo essa hipótese pode-se desvanecer perante uma tempestade perfeita que conjugue um crescimento económico claramente abaixo dos 5,4% previstos pelo Governo para 2021 com o fim das moratórias e uma explosão de falências de empresas no setor dos serviços e consequente aumento do desemprego.

Tal como aconteceu com as vacinas, a Europa pode vir a representar uma salvação com os fundos da reconstrução europeia — a famosa bazuca. Mas o que Bruxelas dá como uma mão pode retirar com outra, voltando a impor os limites de endividamento e do défice orçamental do Pacto de Estabilidade. O que condicionaria fortemente o desenho do Orçamento de Estado para 2022, com todas as consequências políticas que poderão advir daí.

As incógnitas são muitas. Veremos o que nos reserva 2021 com um objetivo claro em mente: o fim da pandemia.

Um Bom Ano Novo com saúde e sucesso para todos os leitores.