Um dos últimos livros do escritor infanto-juvenil brasileiro Ilan Brenman começa assim: “Estava sentado no silêncio do meu escritório a escrever uma história e, de repente, CATAPUM!, uma coisa pesada caiu no chão. Ia abrir a porta para ver o que tinha acontecido quando ouvi a minha filha dizer: ‘Pai, não fui eu, foi o leopardo’”.

A política portuguesa está cheia de leopardos — e, tal como acontece na história do livro infantil, todos eles entram na categoria de animais imaginários que são invocados com o exclusivo propósito de serem responsabilizados por quem não pretende assumir culpas pelas suas decisões.

Esta semana, por exemplo, os eleitores estavam sentados no silêncio dos seus escritórios quando, de repente, CATAPUM!, Joana Amaral Dias escreveu no Facebook que António Costa tem 11 motoristas com um salário bruto de 2121,32 euros. Os eleitores iam abrir a porta de São Bento para ver o que tinha acontecido quando ouviram o primeiro-ministro dizer: “Não fui eu, foi o leopardo”.

O “leopardo” é, naturalmente, Pedro Passos Coelho. O gabinete do actual primeiro-ministro deu-se ao trabalho de emitir um comunicado sobre o assunto para esclarecer a nação (que, pelos vistos, estava em tumulto por causa do tema) e usou dois argumentos tristemente infanto-juvenis. Primeiro argumento infanto-juvenil: “A composição e a dotação dos membros do gabinete do primeiro-ministro” foi definida num diploma aprovado pelo anterior Governo. Segundo argumento infanto-juvenil: “Sete dos 11 motoristas em funções transitaram do anterior Governo”.

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Ou seja: quatro anos depois de ter entrado em funções, António Costa (ou alguém em seu nome) tem a rara coragem de escrever num documento que ainda não teve tempo nem disponibilidade para definir “a composição e a dotação” do seu próprio gabinete, queixando-se assim de ter ficado à mercê das diabólicas decisões tomadas por Passos Coelho; e, além disso, insinua ter sido forçado a ser conduzido — presume-se que correndo riscos rodoviários imprevisíveis — por sete motoristas que, com infinita manha, “transitaram” do Governo troikista.

Era possível defender que este é mais um exemplo da crescente infantilização de uma parte da classe política portuguesa. Afinal, já tivemos um ministro a fazer corninhos no parlamento e um primeiro-ministro a responder a um deputado “Manso é a tua tia, pá!” — portanto, ninguém deveria ficar verdadeiramente espantado por esta utilização do argumento “Pai, não fui eu!”. Mas, na realidade, isso não é o mais importante. O que realmente provoca espanto e fúria (para quem for dado a esses sentimentos) é outra coisa: o primeiro-ministro tem-nos em tão pouca conta? António Costa acha mesmo que alguém acredita, por um minuto que seja, que o seu gabinete tem 11 motoristas por culpa de Pedro Passos Coelho? Mais e pior: se actua desta forma perante um assunto tão irrelevante como a existência de 11 motoristas, que outros “leopardos” inventará o primeiro-ministro para nos iludir sobre assuntos realmente importantes?

A pergunta não é retórica, até porque a resposta chegou um dia depois do comunicado do gabinete do primeiro-ministro, pela cabeça sempre previdente do ministro das Finanças. Quando, numa entrevista ao Público, o confrontaram com os baixos números do investimento público, Mário Centeno defendeu-se assim: “O investimento não é como o Anita Vai às Compras, não vamos com o Pantufa, com um cesto, comprar investimento”. Anita, Pantufa, leopardos imaginários — estamos reduzidos a isto.