1 No jornal online, “Notícias Viriato”, saiu recentemente esta notícia: «Artur Mesquita Guimarães colocou dois processos em Tribunal contra o Ministério de Educação, porque os seus filhos, alunos de média de 5 e do Quadro de Honra, foram retidos dois anos devido a um Despacho assinado pelo Secretário de Estado da Educação, João Costa. O despacho, considerado pelos advogados como “ilegal e inconstitucional”, obriga os filhos de Artur a voltarem dois anos lectivos atrás, do 9º para o 7º ano, e do 7º para o 5º ano, argumentando [com o] facto de os alunos não terem participado na nova disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, da qual os pais, por objecção de consciência, não autorizaram os filhos a participar. Artur já venceu um dos processos.» Helena Matos, no seu blog Blasfémias, já comentou este caso. E sobre o mesmo li um artigo de Julie Machado, «Alunos de Quadro de Honra chumbados», no “Observador”. E de certo haverá outras intervenções, porque a questão é escandalosa.

2 Inspirado pelo título do recente artigo de Rui Ramos, «Não matem a Universidade», a propósito de um análogo facto de intolerância académica, também eu, com este artigo, e a propósito deste despotismo governamental, venho agora pedir que «Não matem a democracia». Porque a Constituição portuguesa é claríssima em reconhecer aos pais o direito e o dever de educarem os seus filhos, declarando expressamente que esse direito/dever é insubstituível; e que ao Estado [apenas] incumbe apoiar as famílias e cooperar com os pais na educação dos filhos. Melhor é recordar os exactos termos constitucionais: «Os pais têm o direito e o dever de educação dos filhos» (art. 36.º); «Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação…» (art. 68.º); «Incumbe designadamente ao Estado […] cooperar com os pais na educação dos filhos» (art. 67.º).

Obviamente, este dever de o Estado cooperar com as mães e os pais corresponde ao direito das mães e dos pais «à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos». Nem só do Estado, mas também e primeiro da Sociedade. Porque é assim que os deveres do Estado correspondem à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos e das famílias. Sublinhe-se que a Constituição define a família como «elemento fundamental da sociedade», e diz expressamente que ela é titular de um «direito à protecção da sociedade e do Estado»  (art. 67.º). Ora, direitos são direitos. E deveres são deveres.

3 Não se pense portanto que, quando a Constituição atribui ao Estado um dever de cooperação com os pais na educação dos filhos, a Constituição dá ao Estado um poder educativo, isto é, um poder paralelo e da mesma natureza do direito dos pais, ou uma função de estrita acção educativa. Esta expressão conceitual, acção educativa, é usada na Lei de Bases do Sistema Educativo, precisamente para distinguir a educação daquilo que, na mesma lei, se designa como estruturas e outros complementos e apoios educativos. Ora, é neste conjunto de estruturas e complementos educativos (que não são acção educativa) que a Lei de Bases inclui — note-se bem — a rede escolar, o financiamento do ensino e outros apoios complementares e de acção social. Esta distinção é claríssima na Lei de Bases. E é assim, e com a sua autoridade de lei de valor reforçado, que esta lei ilumina a interpretação restritiva do art. 75.º da Constituição, onde se incumbe o Estado de [apenas] criar e manter uma rede de estabelecimentos escolares. Criar e financiar um estabelecimento escolar pode ser obra de um ente pessoal ou institucional que não tem direito nem credenciação de educar e ensinar. Aquela coisa serve mas não inclui esta outra.

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4 Mas ainda que se quisesse atribuir ao Estado uma função educativa, teria o Estado educador de respeitar a proibição constitucional de substituir os pais, no seu poder/dever de educação dos filhos. Porque, como já vimos, a Constituição diz expressamente que o poder/dever dos pais é insubstituível (sic). Educação dos filhos é educação (que inclui educação para a cidadania e para o desenvolvimento, seja lá o que isso for). E insubstituível é insubstituível.

5 E para o caso de se manterem dúvidas sobre esta doutrina evidente — porque a história portuguesa, desde o Marquês de Pombal, mostra que o poder político sempre tem querido, ele mesmo e com fins políticos, educar a juventude — o Estado foi expressamente proibido pela Constituição da Terceira República de nem sequer programar a educação, quanto mais de executar uma acção educativa. Diz assim expressamente o art. 43.º: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43.º). Ora, como qualquer projecto educativo (e sobretudo se for educação para a cidadania e o desenvolvimento, seja lá o que isso for) necessariamente implica todas, ou pelo menos várias, destas directrizes, obviamente o Estado não pode programar a educação, ponto final.

6 Finalmente, é decisivo que a Constituição, depois da revisão constitucional de 1997, tenha expressamente confirmado o Estado português como sujeito ao princípio da subsidiariedade. «O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento o regime autonómico insular e os princípios da subsidiariedade, da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da administração pública». O que significa que, na garantia e no apoio aos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, que é a sua função essencial, o Estado é subsidiário, e por isso nunca pode atropelar estes direitos e liberdades, invocando (falsamente) a satisfação de outros direitos, ditos sociais. Porque os direitos sociais são concebidos para dar efectividade aos direitos de liberdade, não para diminuir ou substituir o exercício das liberdades, como concebeu e defendeu a doutrina soviética.

7 Mas é verdade que, como todos estamos fartos de saber, o Estado português tem vindo a programar de facto (não de direito) a educação escolar. E até por simples despachos ministeriais, sobre as sufocadas autonomias pedagógicas dos estabelecimentos escolares. A única novidade, agora neste caso dos filhos de Artur Mesquita Guimarães e sua Mulher, é que pais/cidadãos resistem, como podem e é seu direito, contra um abuso de poder ministerial; em defesa dos seus insubstituíveis poderes/deveres constitucionais de educarem os seus filhos. Devemos-lhe um caloroso agradecimento pelo seu exemplo cívico. E a nossa solidariedade democrática.

8 Todas as escolas, pela sua própria natureza e função, devem ser consideradas pelo Direito como «autonomias funcionais» (este é um conceito jurídico muito importante), analogamente às escolas universitárias. Porque, em todas elas, o que se desenvolve (e é de interesse público) é um exercício acordado de liberdades fundamentais de ensinar e de aprender — para o que o mesmo interesse público exige que os que ensinam em escola sejam devidamente credenciados para tal, pela sua idoneidade científica e pedagógica. Portanto, nas escolas públicas como nas escolas privadas, os professores não são funcionários executivos do Estado educador; são necessariamente e sempre, dada a sua credenciação e competência, verdadeiros e responsáveis pedagogos.

A relação educativa não é uma relação de direito público, em que o professor exercita uma autoridade pública impositiva a que o educando tem que se sujeitar. A relação docente supõe genuinamente as liberdades de ensinar e de aprender de ambas as partes, e portanto só pode ter carácter de direito civil. Tal como a relação entre médico e doente, num hospital público, por exemplo. Assim como é impensável que o Estado imponha aos médicos como curar os doentes, e como dar-lhes «alta», nos hospitais públicos, desde que estes observem as leis da República e do seu Código deontológico profissional, assim não faz sentido nenhum que o Estado trate os professores das escolas públicas como simples executantes administrativos de uma pedagogia oficial de Estado, e lhes imponha quando devem aprovar e reprovar os alunos.

Os professores, que lidam com o desenvolvimento da personalidade dos alunos (que é direito de liberdade pessoal «ao desenvolvimento da personalidade», nos dizeres do art.º 26.º da Constituição), não merecem menos respeito e autonomia profissional do que os médicos, que lidam com a saúde pessoal dos doentes. E por isso deviam ter uma Ordem profissional, que os defendesse como autónomos e responsáveis profissionais que verdadeiramente são, como pedagogos. A verdade é que ainda vivem hoje na proletarização profissional que lhes foi imposta desde Napoleão. Com excepção nas universidades.

9serviço público escolar, em Portugal, deve ser legalmente entendido em rigorosa correspondência ao «sistema educativo», tal como este é definido (e dito que se desenvolve) segundo a expressão da própria Lei de Bases do Sistema Educativo. Em cumprimento da Constituição e como lei de valor reforçado, a Lei de Bases do Sistema Educativo define assim o sistema educativo para todos os portugueses, incluindo os residentes no estrangeiro: «O sistema educativo é o conjunto de meios pelo qual se concretiza o direito à educação, que se exprime pela garantia de uma permanente acção formativa orientada para favorecer o desenvolvimento global da personalidade, o progresso social e a democratização da sociedade».

E depois de assim começar por definir o sistema educativo, a Lei de Bases acrescenta imediatamente que o sistema educativo «[se] desenvolve […] segundo um conjunto organizado de estruturas e de acções diversificadas, por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas». Torna-se deste modo evidente que é por este desenvolvimento pluralista que o sistema educativo constitui, todo ele, o serviço público que presta a garantia constitucional referida.

10 Entenda-se bem: o «desenvolvimento da personalidade» é pessoal, em correspondência ao autónomo «direito [pessoal] ao desenvolvimento da personalidade» que já citámos. Do mesmo modo, o progresso social e a democratização da sociedade dependem da educação pessoal dos cidadãos, da sua educação autónoma e personalizada, não autoritariamente estandardizada pelo Governo. Porque Estado de Direito Democrático quer dizer Estado submetido ao Direito e à Democracia. É portanto o Estado que depende da democracia constitucional, que é exercício de direitos fundamentais. Demo-cracia é poder do povo, não é poder do Estado poder político sobre o povo.

11 Sobre esta base normativa do constitucionalismo e da nossa Constituição, não se vê como possa ser legalmente entendido que o serviço público da educação, para garantir o direito à educação, não seja o funcionamento do próprio sistema educativo. Isto é, o funcionamento do «conjunto de estruturas e de acções diversificadas [note-se mais uma vez a distinção entre estruturas e acções educativas diversificadas, portanto não unificadas], por iniciativa e sob responsabilidade de diferentes instituições e entidades públicas, particulares e cooperativas»; e, em vez disso, possa ser reduzido a estruturas e a iniciativas da exclusiva, directa e autoritária responsabilidade dos Governos.

12 Concluindo e insistindo: o serviço educativo, como serviço interpessoalque é, só pode ser devidamente prestado numa autónoma e responsável relação interpessoal, directa e próxima, entre cidadãos, no exercício autónomo e responsável dos seus direitos e deveres humanos, constitucionalmente fundamentais. Só assim a educação está autenticamente ao serviço do desenvolvimento da personalidade dos educandos pelos próprios educandos e em respeito do poder/dever dos seus pais. Não numa relação de direito público, entre poderes públicos administrativos e cidadãos governados. Esta é a democracia, viva e participativa. Não matemos a democracia.