Esta semana, Portugal acordou no Louisiana dos anos 60. “Puros”, com mais sangue árabe, judeu e africano misturado que aquilo que as suas torpes fantasias permitem reconhecer, puseram umas máscaras brancas, acenderam umas tochas e vieram à cidade. Pelo caminho, ainda ameaçaram de morte três deputadas. Por estes dias, a cada ignomínia soma-se sempre mais uma; e o que falta de Moral (sim, aquela coisa do bem e do mal sem relativismos) sobra abundantemente em estupidez.

O espaço público — cada vez mais alargado, cada vez mais ignorante e cada vez mais violento – tem polarizado as discussões de uma forma lamentavelmente pobre e vergonhosamente primária. Se os antifas, com a sua agenda totalitária e violenta, chamam a si a causa do antirracismo, do outro lado, por sua causa, logo aparecem os negacionistas do racismo, como se esta deplorável chaga não fosse real. Se os neo-marxistas, com a sua agenda anti-tradição, chamam a si a defesa da igualdade de género e dos direitos LGBT, logo aparecem do outro lado os machões, incomodados com as expressões de liberdade individual e com a defesa dos direitos humanos, como se ainda hoje no mundo não fossem perseguidos e mortos gays, meninas não fossem mutiladas, e mulheres não fossem, absurda e inadmissivelmente, vítimas de maus tratos e assassinadas, apenas por serem quem são. Se os animalistas, com a sua agenda desumanizante e destruidora da ordem social, defendem os direitos dos animais, logo aparecem aqueles que se iram com o tema, como se fossem aceitáveis, e até natural da condição humana, os maus tratos a animais. Se a jovem Greta e os seus amigos natura clamam pelo fim dos voos de avião e o regresso às cavernas, por causa das alterações climáticas, logo aparecem os Gordon Gekko dos tempos modernos a negarem o impacto monstruoso dos nossos hábitos de consumo no equilíbrio da nossa casa comum.

Na Antiguidade matavam-se os mensageiros quando as notícias não eram do agrado dos destinatários. Hoje matam-se as notícias, os seus autores, os mensageiros e, temo, a nossa Civilização por arrasto.

Esta bipolaridade que tomou o espaço público tem, desde logo, três problemas. O primeiro é que o torna profundamente ignorante, porque o reduz à escolha entre preto e branco. Quando assim é, e quando os seus principais actores ocupam ruidosamente a discussão, não costuma resultar qualquer síntese virtuosa da mesma. Porque quando o debate é tão pobre, não são teses e antíteses que se discutem, mas apenas antíteses em oposição – sublinhar anti e oposição. Não é conhecimento e evolução que se almeja, mas tão só a destruição do outro, e depois, com ele, as suas posições.

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O segundo, é que quem reage — e nestas matérias tem sido a direita, já que tem sido a esquerda a marcar toda a agenda do debate público — perde sempre a oportunidade de chamar a si causas sobre as quais tem não só um lastro de conquistas sociais — e com isso uma certa autoridade moral –, como também o potencial de apresentar posições mais construtivas e úteis que a mera reacção por oposição — por que não poucas vezes opta — terraplanando com isso todo o seu capital de autoridade moral. E, lamento dizer, ajeitando-se para o epíteto de cavernícola. Logo a direita, que deveria honrar a tradição de olhar para cada indivíduo como pessoa única, sem reduzir a sua identidade a traços identitários, e não a subjugando a derivas rousseanas; que contribuiu decisivamente para a construção do modelo social europeu, dando protecção aos mais vulneráveis, sem impedir o crescimento económico e o prémio do mérito; respeitar a nossa casa comum, a partir do contributo determinante do Papa Francisco com a sua Laudato Si ou dos ensinamentos de Scruton com o seu Green Philosophy.

Finalmente, porque perdemos todos, porque no lugar de melhorar as sociedades em que vivemos, estamos a dinamitar os seus alicerces. Uns porque querem destruir o nosso estilo de vida, numa busca niilista de um futuro distópico, outros porque entram nessa dança destruidora, obliterando todo o processo reformista essencial à conservação das coisas boas.

Talvez nestes tempos, no lugar de regar a fogueira com gasolina fosse inteligente amainá-la com água. Talvez a radicalidade necessária fosse a da moderação, do bom senso e da razão. E não, não estou a falar da “razão que é relativa e que cada um tem a sua”, mas da Razão, aquela coisa maçadora e trabalhosa que se constrói com estudo, debate e abertura ao outro.

Ou então, não. Assim como assim, no futuro estamos todos mortos, e se já ninguém estima o presente, se é para terraplanar a Moral, a Civilização e qualquer expectativa benfazeja de futuro, e se os valores estão irremediavelmente desordenados, façamo-lo com a classe de Thomas de Quincey, em Do Assassínio como uma das Belas Artes: “Se por uma vez um homem se entrega ao assassinato, logo passa a relativizar o roubo; depois do roubo ainda começa a beber e a desrespeitar o Sábado (Sabbath, na versão original), e disso para incivilidade e a procrastinação é um passo.”

Não abram a porta aos bárbaros.