Era uma vez…nada. Vitória, vitória, acabou a História! Esta é a história que vão contar aos vossos netos. Nada. Não vão ter nada para contar. Os brutos que estão a tomar conta do espaço público e os cobardes que, intimidados ou coniventes, se estão a calar não deixarão pedra sobre pedra na mais virtuosa civilização da História: o Ocidente. No final deste Gulag, desta Nacht der langen Messer, no final deste Pogrom, no final desta Inquisição, não restará memória. Não restará nada, sem ser na clandestinidade, para contar aos vossos netos. Apenas ascetismo hipócrita, ignorância e tirania. Se a memória é a consciência inserida no tempo, como nos disse Pessoa (será este o próximo racista a erradicar do espaço público?), sem memória não teremos consciência e o tempo – todo o tempo – não será mais que o presente.

Exagero?

Primeiro foram uns tais de clássicos, Homero e Vergílio, esses homens brancos e privilegiados do passado. Depois foi o quadro de Frans Snyders que melindrava os veganos. Depois foi a censura ao Woody Allen, mas um homem que para lá das acusações que lhe fazem, convida um caucasiano para fazer de Django Reinhardt, um cigano, ainda por cima músico marcante da música negra não sendo negro, estava mesmo a pedi-las. Depois foi o Churchill atacado por antifascistas em pleno dia D. Depois foi Lincoln, um dos homens que mais fez para pôr termo à escravatura, apelidado de racista por anti-racistas. Depois foi a Scarlett O’Hara banida da HBO porque apesar de mulher, também era racista, mas quem é que tem tempo para ver um filme tão longo? Depois foram as Fawlty Towers e a Little Britain, mas como li e ouvi que o Boris Johnson não é de fiar e estes delírios britânicos devem ter qualquer coisa a ver com ele, e como ele tem aquele cabelo tão parecido com o do Trump, não deve ser bom sinal. Depois foi o Baden-Powell, e eu estranhei porque até fui escoteiro, mas se o homem tinha simpatias pelo Hitler talvez fosse merecido. Já agora, se calhar, também pode ir o Furtwängler e a Riefenstahl; destroem-se as gravações do primeiro e queimam-se a obras da segunda. E que tal Wagner? Depois também foi o Mark Twain, e eu voltei a estranhar porque quando era miúdo adorava os desenhos animados do Tom Sawyer e tive pena. Depois foi o Padre António Vieira, o Padre Grande como lhe chamavam os índios, que me tinham dito ter sido o maior defensor dos seus direitos e tinha ouvido dizer que era um dos maiores escritores da língua portuguesa, e eu estranhei uma vez mais.

Da alta cultura à cultura pop tudo arrasado pela sofreguidão dos indignados, com boas causas na boca, más intenções na mente e deploráveis acções nas mãos. Depois pus like neste artigo, e no Twitter e na caixa de comentários houve logo alguém a gritar: privilegiado!, branco!, católico!, machista!, racista!, fascista! Mas nessa altura já não havia ninguém para me defender.

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A herança grega, romana e cristã é demasiado complexa e inconveniente para se estudar. As luzes apagaram-se em favor do obscurantismo. A razão foi substituída pelas indignações emocionais. A Moral substituída pelo nihilismo. O bom, o belo e o justo colapsaram às mãos dos grunhos, ao som da lírica de sentenças mal escritas twittadas em 140 caracteres, da melodia politicamente correcta e ao ritmo da violência e da censura. Lírica, melodia e ritmo?, pergunta com espanto o leitor mais atento. Tem razão, penitencio-me; a afeição aos modelos de perfeição do passado é uma fraqueza de uma alma velha com eu. Na verdade, deveria ter dito antes ruído grotesco que por estes dias não poupa nada nem ninguém.

Exagero outra vez?

Antes exagerasse. Há duas intenções soezes neste movimento: a intimidatória e a ideológica. A primeira usa traços do outro, não como marcas identitárias, mas como Identidade. Como se a pessoa – desumanizada ao olhar dos novos Torquemada – não fosse nada para além desse traço. Como se o branco e o negro não fossem outra coisa, não fossem sobretudo tantas outras coisas, para lá da cor. Como se o homossexual e o heterossexual não fossem outra coisa, não fossem sobretudo tantas outras coisas, para lá da orientação sexual. Como se o comedor de carne fosse um facínora. Como se o fumador fosse um impuro. Como se o crente fosse um ignaro prevaricador. Como se os pecados ou pecadilhos de cada um – sobretudo os que os censores lhes apontam – fossem a totalidade de almas sem redenção. E como se o fragmento do que cada um é, o fragmento trazido aos olhos do tribunal da turba, devesse causar vergonha, e fosse merecedor de intimidação primeiro e banimento depois. Como se o Homem fosse agora reduzido a caricaturas pró ou anti, meros instrumentos das ideologias.

E isto leva-nos à segunda intenção: a ideológica. Um passado obliterado, as liberdades individuais absolutamente subsumidas à volonté générale, as tradições condenadas à fogueira, os seus símbolos ao derrube são a folha em branco onde o Homem Novo se poderá finalmente emancipar no amanhã que canta. Esta tendência – testada vezes sem conta na História que querem apagar – conduziu sempre à tirania e à morte de milhões. Convém talvez lembrar – enquanto não é banida também – Hannah Arendt quando diz que o que é desconcertante no sucesso do totalitarismo é o verdadeiro altruísmo dos seus adeptos.

No final, no distópico final, um velho senta ao seu colo o neto – se isso não for decretado como microagressão – e conta-lhe uma história: Era uma vez…nada. Vitória, vitória, acabou a História!