Depois de desavenças diversas entre Washington e Berlim devido ao Nord Stream 2 – o  gasoduto que parte da Rússia e a termina na Alemanha sem passar pela Ucrânia – o presidente Joe Biden, depois da visita da chanceler à Casa Branca, anunciou o seu acordo relativamente à empreitada que tinha deixado os seus antecessores de pé atrás, especialmente desde a invasão e anexação da Crimeia em 2014.

A decisão criou ruído e pareceu, aos olhos de muitos analistas, despropositada e fora de contexto. Mas a verdade é que não é assim. A presidência Biden tem mudado paulatinamente a sua política em relação a Moscovo. Se devidamente enquadrada, esta decisão tem riscos, mas faz sentido.

Para atingir o seu objetivo principal – isolar a China – os Estados Unidos precisam de assegurar pelo menos dois elementos: uma certa neutralidade da parte de Moscovo, relativamente à disputa pela transição de poder que opõe americanos e chineses, e a colaboração ativa das democracias.

Disto constou a Cimeira Biden-Putin em Genebra, em meados de junho. Sem conferências de imprensa conjuntas nem festejos de amizade, ambos pareceram sair moderadamente satisfeitos da longa conversa. A imprensa apressou-se a dizer que as tensões entre os dois países se tinham aplacado, mas o que aconteceu foi muito mais que isso. Biden foi oferecer ao homólogo russo um novo estatuto internacional: o de “grande potência”.

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Ora, isto significa três coisas: primeira, se Putin não passar determinadas “linhas vermelhas”, especialmente relacionadas com o cibercrime e o conflito latente na Ucrânia, poderá ter uma relação pacífica com os Estados Unidos; segunda, o estatuto de grande potência dá à Rússia um conjunto de privilégios, nomeadamente, a não intromissão de outras potências na sua soberania e na sua área de influência; e, terceira e a mais importante, os EUA reconhecem a Moscovo a legitimidade do exercício do poder internacional. Exatamente o tipo de estatuto que a administração Biden se recusa a reconhecer à China que, assim, fica isolada como a principal ameaça aos Estados Unidos e, da perspetiva de Washington, um estado sem legitimidade para impor a sua liderança no sistema internacional.

Já para conquistar a Europa para o seu círculo do mundo livre, Biden sabe que tem de ter, em primeiro lugar, a anuência alemã. Foi disso que se tratou na visita de Angela Merkel à Casa Branca. A Alemanha é o mais reticente parceiro europeu no que toca ao isolamento da China (desde logo, do ponto de vista económico, importantíssimo para os americanos) e para que isso venha a acontecer é preciso fazer concessões. O Nord Stream 2 é das mais importantes cedências que Biden pode fazer, simultaneamente a Berlim e a Moscovo.

Como foi sugerido na semana passada, Biden tem uma narrativa com três ideias principais – a China é o inimigo sistémico dos Estados Unidos; Washington é o líder do mundo livre num sistema internacional bipolarizado entre democracias e autocracias; e as democracias deverão unir-se em torno dos EUA para combater a ameaça autocrática e não permitir que esta chegue a ter importância suficiente para transformar a ordem internacional e a nossa forma de vida. Neste contexto, a concessão de Biden à Alemanha e a indulgência com a Rússia – uma autocracia – parecem não fazer qualquer sentido.

Mas fazem. O prémio principal é o isolamento chinês e o preço a pagar é conceder a quem se preferia não conceder nada, e incorrer em contradições como esta. A política é a escolha da melhor das más decisões e a Rússia é um mal menor que a China, do ponto de vista americano. E o objetivo de Biden é, também como já se disse anteriormente, transformar a sua narrativa numa doutrina que perdure depois de si. E estes foram passos dados em direção a esse caminho.