Vamos lá ver se percebi bem. A venda da PT Portugal a uma empresa francesa é um crime de lesa-pátria. Já a venda da Portugal Telecom SGPS a uma empresária cuja fortuna é indissociável de ser filha do Presidente de Angola é uma espécie de reedição de defenestração de Miguel de Vasconcelos, de segunda Restauração.
Portugal tem coisas que não se entendem.
Durante anos a fio a existência de uma golden share na PT só teve efeitos perniciosos: proteção da sua posição dominante no mercado, utilização da empresa para fins políticos, aventura da Oi e por aí adiante. Mesmo assim, o professor das noites de domingo da TVI entende agora, três anos depois, que acabar com a golden share foi um erro.
Durante anos a fio não houve cão nem gato que não falasse da importância estratégica do Brasil. No dia em que, num negócio com o Brasil, está em causa o destino de uma empresa portuguesa, passa a ser necessário “enfrentar os brasileiros”, algo que só por si “merece uma saúde”.
Num dia, o destino de Portugal é a Europa. No dia seguinte, o Brasil. Ou talvez não, é antes “a lusofonia” (fica mal dizer que é apenas Angola). Não há apenas desnorte na forma como se saltita de destino estratégico em destino estratégico – há também algum cheiro a ranço. Quando o professor diz que prefere Isabel dos Santos porque “prefere lusófonos a não lusófonos, que eu não sei quem são”, não está a apenas a dizer uma coisa que pensa ser popular: está a apelar ao tipo de sentimentos pós-imperiais que sempre nos impediram de olhar para Angola como uma oligarquia condenável – o mesmo tipo de sentimentos e de estratégia que nos levou, por exemplo, a ceder à chantagem e a aceitar a Guiné Equatorial na CPLP.
Espero sinceramente que a oferta de Isabel dos Santo seja julgada pelas autoridades competentes apenas pelo que é: uma oferta que tem de fazer pela vida no mercado, convencendo accionistas e investidores (e a oferta, pelo valor que hoje tem, é uma má oferta, ficando 30% abaixo da cotação média das acções nos últimos seis meses). Mais nada. Mas temo que isso não suceda.
Ao contrário do que hoje vi sugerido em muitas notícias, não há nenhum altruísmo nesta OPA. Isabel dos Santos já tem interesses no mercado português de telecomunicações, através da NOS, e qualquer movimento de consolidação com a PT não seria bom para a concorrência e, por isso, para os consumidores. Isabel dos Santos também quer influenciar os termos das venda da quota da Oi na Unitel, a empresa de telecomunicações angolana de que também é sócia. Talvez também queira entrar a sério no mercado brasileiro, mas isso exige muito mais músculo financeiro do que 1,2 mil milhões que agora oferece. No meio disto tudo falar de “proteção da PT Portugal” e do seu “centro de inovação” é poeira para os olhos – é dizer o que algumas pessoas querem ouvir, mas não deve levar-nos ao engano.
Mas há mais e mais importante. E esse mais importante é que as posições que Isabel dos Santos já detém em Portugal não nos deixam tranquilos. Uma posição no BPI. Outra posição no BIC, o banco dirigido por Mira Amaral que ficou com os despojos do BPN. Uma quota do ex-BESA, o antigo BES Angola. Uma parceria com a Sonaecom para controlo da NOS. Uma participação indirecta na Galp. E um número desconhecido de propriedades. Pelo menos.
Não foi o génio empresarial de Isabel dos Santos que lhe permitiu ir acumulando todas essas posições – as qualidades próprias da filha do presidente de Angola sempre foram alavancadas pelo poder do pai. Muitas das posições que tem em empresas portuguesas conseguiu-as no quadro de negociações para a entrada de empresas portuguesas em Angola. Mais: é sabido que em Angola só se pode investir tendo sócios locais, e que Isabel dos Santos sempre pode escolher os melhores negócios.
A empresária tem um estilo e uma presença mais sofisticado (mais civilizado?) do que outros investidores angolanos que se distinguem pela forma como exibem as suas fortunas em restaurantes ou adquirindo apartamentos de luxo, mas isso não a distancia do seu tipo de práticas. Isabel dos Santos ainda não tem, que se saiba, investimentos em órgãos de comunicação social portugueses, ao contrário do que sucede com outros oligarcas angolanos, que já têm posições relevantes ou de controlo em jornais como o Diário de Notícias, Jornal de Notícias, i e Sol, até em rádios como a TSF, mas isso não a impediu de passar a controlar a edição da Forbes para os PALOP apenas quatro meses depois daquela revista ter publicado uma reportagem em que denunciava as origens da sua fortuna. Há quem pense que o silêncio se compra.
Isabel dos Santos também não avança nesta OPA apenas com a força dos seus dólares – ela também sabe que continua a contar com o facto de ser filha de quem é. É que na Oi também tem participação o BNDES, o braço financeiro do governo brasileiro, e, como já hoje foi recordado, ninguém em Brasília quererá indispor a família presidencial angolana pois há demasiados negócios brasileiros em Angola.
Quando se está sem dinheiro, como Portugal está, como os empresários portugueses estão, é compreensível que se aceite a entrada de dinheiro de quem o tem. E os oligarcas angolanos, imensamente ricos num país imensamente pobre, têm muito dinheiro. Mas quando se trata de optar entre dinheiro angolano e dinheiro francês, ou mesmo dinheiro brasileiro, a súbita paixão de tantos comentadores e editorialistas por Isabel dos Santos deixa-me perplexo.
Portugal orgulha-se de ter sido o único Império que, um dia, transferiu a sua capital para um das suas colónias, no caso o Rio de Janeiro, para onde foi a corte de D. João VI. Portugal não se orgulhará de, estando na União Europeia, ter deixado uma boa parte da sua capacidade de decisão soberana fugir para Luanda. Aí a única corte conhecida é a de José Eduardo dos Santos, o pai de Isabel.
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