Há muitos anos que se defende, como acontece em países mais ricos que o nosso, que os manuais escolares devem ser gratuitos no ensino obrigatório. Pragmaticamente, cada escola tinha manuais que reutilizava e entregava simplesmente aos alunos no início do ano. Mas não foi assim que se decidiu. Criou-se, como é habitual, um complicadíssimo sistema burocrático, sem qualquer garantia de reutilização. Vale a pena ler a experiência de um pai aqui, focando-nos essencialmente no processo burocrático para aceder aos ditos manuais. Ou este guia para aceder aos livros – a necessidade de um guia revela em si que o processo não é simples.
A complexidade do processo não pretende, contudo, criar dificuldades. O sistema encarrega-se de dar os livros mesmo a quem não os quer, esquecendo-se por completo das regras de protecção de dados que têm sido esgrimidas pelas razões mais estranhas – veja-se por exemplo a oposição ao inquérito que estava a decorrer nas escolas e que até leva a pôr em causa questões do próximo Censos, mas este é outro tema.
Para que serve ou a quem serve um processo tão complexo quando tudo podia ser gerido nas escolas? Não se percebe. Centralização? Por falta de confiança na capacidade de as escolas gerirem os livros? Porque a regra é clara: todos os que andam em escolas públicas ou privadas com acordo de associação têm direito a manuais gratuitos. (Não vale a pena discutir se o direito devia ser alargado a quem tem os filhos em escolas privadas porque o debate ficaria imediatamente inquinado com acusações laterais de se querer beneficiar os ricos, como se “os ricos” não pudessem ter, e não tivessem, os filhos em escolas públicas).
O fornecimento de manuais escolares gratuitos reutilizáveis tem condições para atingir vários objectivos: o primeiro, e mais importante, garantir o acesso à educação a todos, sem excepção, no quadro das políticas de promoção da igualdade; em segundo lugar, o Estado deve pagar esses manuais porque cidadãos educados garantem países mais desenvolvidos, todos beneficiando com isso e não apenas quem tem mais Educação; finalmente e não menos importante, a reutilização dos manuais promove uma cultura de partilha e de combate do desperdício. O único objectivo plenamente atingido é o primeiro. Em parte, por excesso de centralização.
E daqui partimos para o processo de descentralização em curso que está, como é óbvio, a começar mal. É um dos temas que mereceu o acordo entre Rui Rio e António Costa. O Governo aprova uma lei que consagra a transferência de competências para as autarquias, mas sem que se conheçam os recursos humanos e financeiros. Quem ler o diploma fica exactamente com o mesmo receio, sob a forma de “questão em aberto”, que o Presidente da República manifestou quando promulgou o diploma a 2 de Agosto: “o inerente risco de essa transferência poder ser lida como mero alijar de responsabilidades do Estado”. O que se tem passado, desde então, em vez de acalmar esse receio adensa-o ainda mais.
Como é que as autarquias vão ficar com o conjunto de responsabilidades — em que se incluem os cuidados primários de saúde, a educação e equipamentos –, sem que estejam previamente acautelados os devidos recursos? E se são as autarquias a prestar alguns dos serviços agora fornecidos pelo Estado como é que isso não se traduz, ao mesmo tempo, na eliminação de departamentos do Estado? Um dos artigos que coloca essa questão é, por exemplo, o do Presidente da Câmara de Santa Maria da Feira, Emídio Sousa.
Como se isso não bastasse, o Governo colocou as autarquias perante a posição de darem um salto no escuro. Para não ficarem com essas competências já em 2019 – faltam quatro meses –, teriam de dizer explicitamente que o não queriam até dia 15 de Setembro, supondo-se que nessa altura já existiriam os diplomas que regulamentavam a lei, definindo concretamente os recursos. Não havia diplomas ainda nessa data e o ministro Eduardo Cabrita decidiu anunciar que aquele prazo, que está na lei, não valia, e que iria ser prorrogado. Claro que partidos como o PCP deram orientações às suas autarquias para que dissessem “não queremos”, numa posição que também é seguida pelo CDS, com menos efeitos pela sua muito mais reduzida representação autárquica. Se quem lidera as câmaras pensasse pela sua cabeça, e não pela do seu partido, teríamos assistido a um generalizado “não queremos”, enquanto não se perceber exactamente se existem condições, para prestar os serviços que o Governo quer transferir do poder central para o poder local. Não foi isso que aconteceu, ainda menos porque este foi um acordo de bloco central – PSD e PS.
O caso dos manuais escolares mostra bem a falta de uma real vontade de descentralizar e a indiferença em relação à necessidade de se ser mais eficiente através da reutilização. Mas pelo menos os livros são distribuídos gratuitamente, há uma transferência do custo para todos nós.
No caso da descentralização em andamento existem razões para termos os maiores receios ou, como diz o Presidente, para que existam muitas, talvez demasiadas, questões em aberto. Corremos o sério risco de assistir à degradação dos serviços gastando mais dinheiro e com Governo e autarquias a culparem-se uns aos outros. Parece mais um processo de desresponsabilização do que de descentralização. De facto, assim não há impostos que cheguem.