Há 15 dias, o Tribunal da Relação de Lisboa reverteu a decisão anterior que obrigava a Wikipédia a retirar informações da página de César do Paço sobre a sua ligação ao Chega. O empresário não queria que o seu financiamento ao partido fosse referido e, por momentos, parecia que a Justiça portuguesa lhe ia fazer a vontade. César do Paço não gosta de ser lembrado das tolices que fez no passado. Percebo-o. Também já gastei dinheiro em coisas estúpidas que queria manter escondidas do resto do mundo. Infelizmente, o corte de cabelo “tosquia praticada por maneta bêbado” apareceu em demasiados sketches que continuam espalhados pela internet.

Por mais que César do Paço queira esconder, o seu dinheiro foi mesmo para o Chega. Provavelmente, esbanjado em rebuçados de mentol para as gargantas dos deputados, por causa dos gritos todos que dão. Já não há volta a dar. Julgo ser consensual que o Tribunal tomou uma boa decisão. Reescrever a história é um mau princípio, normalmente com um mau fim.

Também recentemente, em Itália, o Governo mandou retirar o nome do progenitor não biológico das certidões de nascimento de filhos de casais homossexuais  Alterar certidões é outra forma de falsificar o passado. Quando, daqui a 100 anos, um historiador pesquisar documentos italianos dos anos 20 do século XXI, vai consultar fraudes.

Julgo ser igualmente consensual que o Governo italiano, além de uma burla, está também a praticar uma maldade. Para os pais retirados das certidões dos seus filhos e para os filhos que se vêem órfãos por decreto. É estalinismo notarial. Ou, para usar uma referência mais actual (e evitar citar Orwell, embora reformular o passado para se adaptar às exigências do presente fosse a profissão de Winston Smith), isto é uma espécie de gaslighting burocrático. Querem-nos convencer de que o que se passou não foi afinal o que se passou. César do Paço e Governo italiano de extrema-direita, a mesma luta.

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A que devemos acrescentar agora a companhia dos partidos portugueses, encabeçados pelo Livre, que se preparam para aprovar, na lei de autodeterminação de género que está agora na Comissão especializada, a hipótese de alterar as certidões de casamento e de nascimento das pessoas trans e dos seus descendentes. Vale a pena citar a notícia: «A iniciativa do Livre quer alterar a forma como são actualizados os assentos de nascimento e casamento. Actualmente, a lei prevê que os maiores de 16 anos mudem o nome e género no registo civil. Mas caso tenham filhos, a actualização da certidão de nascimento dos descendentes só acontecerá quando atingirem a maioridade (se o pedirem). O Livre defende que isto leva a “uma situação de incongruência jurídica” e o mesmo acontece na certidão de casamento. Se o cônjuge não permitir, no documento não será actualizado o nome da pessoa que mudou de género, o que contraria “o direito à autodeterminação que a lei reconhece à pessoa trans”, argumenta o Livre. O partido do deputado único Rui Tavares pretende que a actualização do nome da pessoa seja feita se o próprio assim desejar (independentemente da vontade do filho ou do cônjuge, no caso da certidão de casamento).»

Ou seja, João casa com Maria. Passados uns anos, João decide que afinal é Sónia e por isso muda a certidão de casamento. Sem o autorizar, Maria passa a estar casada com Sónia. Aquelas fotografias com um barbudo de fato escuro? É melhor rasgar. O vídeo da festa? Apagar, para ninguém poder ver que não foi a Sónia a atirar o bouquet da noiva.

Melhor: João e Maria têm um filho, Pedro. Passados uns anos, João decide que afinal é Sónia e por isso muda a certidão de nascimento do seu próprio filho, que passa a ser filho de Maria e Sónia, apesar de todas as lembranças que tem com o pai João. A isto o Livre chama “actualização”. Suponho que sim, pode-se chamar “actualização” a mudar certidões de outras pessoas, se considerarmos que o Ricardo Salgado actualizou as finanças de muitos investidores no BES.

João quer ser Sónia, tudo bem. Mas não pode obrigar a sua mulher a dizer que afinal é lésbica, ou o seu filho a dizer que tem duas mães. Nem os seus pais a dizerem que, em vez de um garboso menino, tiveram uma linda princesa. É legislar sobre a memória das pessoas. O próximo passo é implementar lembranças. (Se isso vier a acontecer, posso pedir para me instalarem umas memórias bem atrevidas com a Claudia Schiffer? Em nova, claro. Eu agora, com 46, ela em 1996, com 26).

Este é um caso em que ao activismo trans é permitido o que, noutra situação, é considerado inadmissível. Não é o único. Querem ver outro? Castração química. Grotesco, não é? Só degenerados é que podem propor que se submetam pessoas a esse tipo de tratamento, mesmo como castigo para um crime hediondo como a pedofilia. A não ser, claro, que seja o activismo trans a exigir que se usem as mesmas drogas para bloquear a puberdade em menores (muitos deles ainda crianças). Os efeitos da mutilação sexual e esterilização são os mesmos, a irreversibilidade também. A diferença é que os menores não são criminosos. São apenas jovens com problemas sérios a quem apenas é oferecida uma solução radical: medicalização pesada e posterior mutilação de órgãos saudáveis.

O que nos traz a outro exemplo em que uma prática ilógica e irrazoável é permitida ao activismo trans: a proibição de ajuda psicológica a jovens. Ao abrigo da proibição de terapias de conversão, impede-se que crianças com disforia de género possam recorrer a psicólogos que as ajudem a, eventualmente, ultrapassar os sentimentos negativos que têm sobre o seu corpo. Isso é considerado conversão. A única terapêutica autorizada é a que afirma a disforia de género, cujo único caminho é a mudança de sexo. Isto só se permite nesta área. Se um técnico de saúde mental receber uma jovem anorética que quer perder peso, não lhe vai receitar uma banda gástrica e propor uma lipoaspiração. Vai tratar os problemas psicológicos e de auto-imagem de que sofre, para lhe tentar diminuir o sofrimento.

A batota é outro comportamento condenável normalmente, mas tolerável pela ideologia trans. Temos regras para que atletas não possam usar substâncias que lhes dêem vantagens competitivas, mas estamos preparados para admitir que homens compitam contra mulheres. Condenamos Lance Armstrong pela burla, mas se em vez de doping tivesse dito que afinal se chamava Laura Armstrong e ganhasse 7 Voltas à França Femininas, era considerado um heroína.

É óbvio que quem faz as regras são os homens. A prova disso é o caso do remo nos EUA: homens que se identificam como mulheres podem entrar à vontade nas provas femininas, a não ser quando as corridas são mistas. Nessa altura, não dá para ter um barco só com homens em que metade dizem que são mulheres. Nem pensar. Aí é preciso haver metade de mulheres de origem. Curiosamente, a partir do momento em que o prejudicado pode ser um homem, as regras tornam-se logo mais sensatas.

Acho que ainda tenho espaço para mais um exemplo de práticas inadmissíveis na vida em sociedade, excepto quando são defendidas pelo activismo trans: mostrar pénis a mulheres que não os querem ver, por vezes obrigando-as a manipulá-los. É um comportamento que a sociedade se habituou a condenar, mas que é capaz de começar a ficar bem visto. Se calhar, ainda vamos acabar a reescrever documentos antigos para louvar exibicionistas, em vez de os recriminar. Desde as guardas prisionais que são obrigadas a revistar reclusos que agora dizem que são mulheres, passando pelas reclusas que têm de conviver com eles, até às esteticistas a quem é solicitado uma depilação ao escroto de uma cliente. Já para não falar dos balneários atléticos femininos em que homens se despem à vontade, uma vez que antes de tirarem as cuecas recitaram as palavras mágicas “sou uma mulher”.

Aos poucos, o absurdo vai ganhando espaço na normalidade. Para já, banalizou-se a falsificação, os maus-tratos a crianças, a batota e o assédio. Isto não é tanto activismo trans, é activismo tranche: um pedaço de palermice de cada vez.