Numa carta dirigida a George Orwell, autor de 1984, Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, analisou a evolução da sociedade desde a publicação destes dois ensaios distópicos. Em que medida uma ou outra distopia estavam a concretizar-se no mundo real? Na opinião de Huxley corríamos um risco maior de vermos concretizadas as profecias do Admirável Mundo Novo do que as de 1984. Huxley argumentou que embora a eficácia dos métodos totalitários, como por exemplo a vigilância permanente através do “Big Brother”, fossem eficazes a curto prazo, era inverosímil que essa eficácia fosse sustentável a longo prazo quando aplicada sobre a maioria da população. Por conseguinte, uma sociedade do tipo do Admirável Mundo Novo, asséptica, anestesiada, condicionada no pensamento livre e, sobretudo, com provisões certas de “felicidade” para as várias castas, seria uma sociedade mansa, pouco dada a rupturas sociais e, por isso, mais concretizável e duradoura.
Na verdade, nas sociedades ocidentais do nosso tempo os elementos das duas distopias surgem interligados numa espécie de síntese diabólica. Hoje é possível assistirmos a um caminho para a violência intrusiva do estado ao estilo do livro de Orwell, embora aquilo que sustenta essa intrusão no longo prazo seja o facto desta se aplicar, sobretudo, sobre uma parte da população, em benefício de curto prazo da outra parte. Para que tal resulte, o ambiente cultural e o condicionamento do mundo ficcionado por Huxley têm de veicular mensagens, via governo e comunicação social, que mais não são do que doses de “soma”, a droga que nos mantém num estado letárgico e que nos afasta das agruras da infelicidade, do risco, do desamor e da dúvida. A droga que, de tanto nos condicionar, nos destrói a liberdade em nome da segurança e da “boa cidadania”.
A boa cidadania no mundo de hoje não constrói a democracia, mas resulta dela. Esta inversão de causa efeito tem consequências perversas e potencialmente autofágicas para a própria democracia. De facto, a nossa sociedade civil parece especialmente confortável com a democracia, ao mesmo tempo que revela desconforto com a liberdade. Em vez de distinguir aquilo que deveria ser decidido democraticamente daquilo que não deveria ser sujeito ao sufrágio democrático, abrem-se as portas aos tiranos democratas que colocam cada vez mais assuntos à consideração das maiorias, o que viola as nossas obrigações com terceiros, designadamente a obrigação de não interferir na sua liberdade.
Para que isto resultasse foi importante desconstruir os significados e veicular a novilíngua por todos os meios oficiais e oficiosos. Por exemplo, quando se fala em “direitos” e “liberdade” já não nos referimos ao direito de não interferência na nossa vida privada, social e económica. Pelo contrário, os “novos direitos” são positivos e implicam a obtenção, através do Estado, de um conjunto de coisas e não apenas a proteção deste sobre os nossos “velhos” direitos de não interferência de terceiros.
O que nem Huxley nem Orwell previram foi esta aliança entre a democracia e a destruição dos velhos direitos em nome dos novos. Em outros ensaios políticos, como por exemplo Da Democracia na América, de Tocqueville, ficou patente esta preocupação sobre a extensão do poder democrático como ameaça à liberdade. Já mais recentemente, o recém-falecido Roger Scruton explicou como foi vítima do condicionamento e de perseguição nos meios académicos, pelo simples facto de não partilhar a doutrina da esquerda bem-pensante.
No ano passado, o deputado João Cotrim de Figueiredo estreou-se na Assembleia da República empunhando O Caminho da Servidão, de Frederich Hayek. Foi um bom sinal, já que se trata de um grande sucesso editorial em que a tese central é a de que o socialismo conduz ao totalitarismo, isto é, as políticas de “justiça social” em nome do “bem-comum” contêm um gérmen da destruição da liberdade. Por outras palavras, os (novos) direitos positivos de uns subtraem os (velhos) direitos negativos de outros e tendem a subtrair os de todos.
Como é que um partido de ideias liberais contraria isto?
É tremendamente difícil, mas pode ir tentando marcar pontos, colocando alguns temas na agenda:
- A administração tributária tem poderes totalitários sobre os contribuintes, como, por exemplo, a inversão do ónus da prova em matéria fiscal. Estes poderes têm de ser abolidos num Estado de Direito. Um partido de ideias deveria colocar isto no topo da agenda, em especial sempre que se discute o Orçamento do Estado.
- O salário mínimo em geral e a subida dos últimos anos em particular representam um ataque à liberdade contratual. Se numa fase de expansão económica, os efeitos da subida no salário mínimo podem ser mitigados pelo crescimento natural do emprego, já em tempos de contração económica representam mais uma rigidez que levará ao desemprego e/ou à subcapitalização das empresas. Para além disso, o salário mínimo obrigatório retira do mercado muita mão de obra menos qualificada ou em processo de qualificação, mão de obra que se perpetua na mendicidade e dependência de subsídios. Um partido de ideias tem de ter a coragem de propor a abolição do salário mínimo.
- O estado da sociedade pós-Covid acentuou a diferença entre uma economia privada, que vive da produção e trocas voluntárias, e uma economia pública, que providencia bens e serviços públicos (necessários ou não). Se parte da economia (privada e pública) foi obrigada a parar, total ou parcialmente, seria da mais elementar justiça que se aplicassem as mesmas regras a ambas. Qualquer partido sério, desprendido das clientelas eleitorais, proporia isto.
Estes são temas muito difíceis, e estão cheios de armadilhas e alçapões. São causas condenadas a uma derrota democrática numa primeira fase e, inclusive, ao opróbrio decretado pela esquerda e pelos seus arautos. Por isso mesmo, no mundo em que vivemos, são estas as causas que vale a pena defender.