Um, dois, três, quatro enganos
O primeiro-ministro António Costa diz que «não há o partido do vírus e o partido do antivírus», razão por que convocou os líderes dos partidos para comunicar-lhes algumas medidas avulsas do governo e ouvi-los sobre a pandemia do coronavírus.
O primeiro-ministro António Costa diz que «é essencial que o país sinta que os políticos estão convergentes para responder às necessidades dos que estão ou possam vir a estar infetados».
O primeiro-ministro António Costa diz que «esta é uma luta pela nossa própria sobrevivência» e que «só juntos a conseguiremos enfrentar».
Quando um primeiro-ministro socialista age assim podemos ter a certeza de que tem três ideias na cabeça: alijar responsabilidades pela ocorrência de crises; alargar a área potencial de culpabilização em caso de ocorrências graves; e criar um ambiente artificial de unidade e coesão que faça parecer deslocada e extravagante qualquer crítica ao seu governo.
O primeiro-ministro António Costa engana-se e tenta enganar-nos: há um partido do vírus. O partido do vírus é aquele partido que governe quando eclode uma epidemia ou pandemia, e é esse partido que deve ser julgado pelo que fez antes da crise, pelo que faz durante, e pelo que fará depois. É esse partido que deve ser julgado, sobretudo, quando o estado das instituições, das instalações, da gestão, do pessoal e dos equipamentos do ramo da saúde dependem directamente das políticas que esse partido defendeu, promoveu e aplicou durante mais de 5 anos.
O primeiro-ministro engana-se e tenta enganar-nos: o país não precisa de sentir que «os políticos estão convergentes para responder às necessidades». Ao contrário, o que é essencial ao país é sentir que os calendários e medidas de combate à pandemia estão sob escrutínio, e, mais, que o país tenha a garantia de que erros determinantes da impreparação do país perante desastres, sejam financeiros ou biológicos, serão apontados, para correcção.
O primeiro ministro tem razão, «esta é uma luta pela nossa sobrevivência». Pois é. Mas a sobrevivência, como a solvência, preparam-se antes, com visão e políticas de médio e longo prazo, e não em cima da desgraça, que, na falta dessa visão, será trágica. O primeiro-ministro tem razão, «só juntos a conseguiremos enfrentar». Mas só ele e o seu governo teriam podido precaver o pior, além de disporem de mandato para o fazer.
Devemos ter a certeza que se espera o pior quando ouvimos o primeiro-ministro avisar que «o vírus é novo» e que há «incerteza»; deve esperar-se o pior quando a ministra da saúde vai avisando que a maior parte dos doentes terá que «fazer o tratamento em casa».
Quando ouvirem um jornalista dizer que «nenhum país está preparado» para uma crise destas, concluam que desistiu de ser jornalista, de investigar e exercer escrutínio, e escolheu proteger o poder. Prefere enganar. E nem é necessário chegar ao nível abjecto de lisonja e servidão de certo jornal de reverência, que no dia 12 de março elogiava o primeiro-ministro pela coragem de resistir às pressões para fechar as escolas, e no dia 13 de março lhe gabava a determinação de as ter mandado fechar.
E não deverá faltar muito para algum trauliteiro socialista declarar que qualquer crítica ao governo só prejudica os esforços de combate à pandemia.
Devemos esperar o pior, tal como antes deveríamos ter esperado que a governação fosse melhor.
Nove fortalezas
Agora, que é tarde, agora que, com a cumplicidade de Partido Comunista e Bloco de Esquerda, que apoiaram cativações e erros com os seus votos e silêncio, o Serviço Nacional de Saúde vive um caos de meios insuficientes, gastos excessivos, pessoal a menos e horas a mais (muito devido ao tal horário de 35 horas que não custaria nem dinheiro nem eficácia); agora que a linha SNS24 colapsa por falhas técnicas e míngua financeira (das quais saberemos cada vez menos, porque foi para lá enviado um boy, a substituir quem antes alertava); agora que os meios de diagnóstico escasseiam, que não há camas nem aproximadamente bastantes, que falta material decisivo para a sobrevivência de doentes, o primeiro-ministro reuniu aquilo a que o Expresso chama «grupo forte», 8 ministros 8, para preparar um Conselho Europeu sobre medidas contra a pandemia.
E quem é esse «grupo forte» em que devemos confiar?
É o primeiro-ministro, em primeiro lugar e por definição.
Somos chamados a confiar no primeiro-ministro, antigo ministro de Sócrates, que nada estranhou nessa governação. Confiar no primeiro-ministro que, ainda hoje, defende que a bancarrota se deveu a um capricho da União Europeia – e disse-o ainda agora: que acolhe alegremente os fundos disponibilizados pela Comissão Europeia para enfrentar a crise, mas que «não podemos correr o risco de se repetir o que aconteceu em 2009 (…) para que daqui a dois anos não se venha dizer que se fez mais do que se deveria fazer». Sócrates, pensa e diz ele, fez tudo bem, foi apenas a UE que mudou de ideias e o tramou. Somos convidados a confiar no primeiro-ministro de Pedrógão, de Tancos, das listas de espera nos hospitais, do crescimento que colocará Portugal no lugar de país mais pobre da União.
E quem mais, nesse grupo forte?
A ministra da saúde, evidentemente. A ministra da saúde que houve o hino da CGTP aos berros quando se sente irritada; a ministra que se orgulha de chumbar a Parceria Público Privada do Hospital de Braga, que em 2017 era o melhor hospital do país, com mais alto grau de satisfação dos utentes, e que, agora, embora gastando mais 100 milhões de euros por ano, tem tempos de espera inadmissíveis nas urgências, e está sem meios para combater o coronavírus; a ministra que defende que «a gestão dos hospitais seja pública»; a ministra que quer descartar os mesmos privados que garantem 40% da oferta hospitalar instalada e servem 3 milhões de utentes; a ministra do partido que chumba (com a ajuda do PCP, do Bloco e do PAN) o projecto para dar aos utentes a possibilidade de irem a um hospital privado, quando o hospital público tenha excedido o Tempo Máximo de Resposta Garantido [Atentem bem: ««Máximo» e «Garantido». E se esse tempo de resposta não acontecer, que acontece? Ora, nada, diz a bancada socialista e concordam BE e PCP e PAN, enquanto não morrerem garante-se-lhes outra coisa qualquer]; e a ministra, por fim, que em conferência de imprensa, no dia 14, advertiu que «se os comportamentos [dos portugueses] não mudarem, o SNS não vai aguentar». Fiquem a saber, antecipa ela desde já: a culpa não é do governo, é vossa.
É do «grupo forte» o ministro Centeno, o ministro das cativações de verbas do SNS, das quais ele agora talvez libere algumas para que possamos confiar; e o ministro da Economia Siza Vieira, que dizia esperar que o país continuasse a crescer como cresce, quando já era sabido que mais um país, a Polónia, nos ultrapassara em riqueza e bem estar, e cuja anémica esperança um vírus matou de vez.
Confiemos. Confiemos em Eduardo Cabrita, grande agente da saga do computador Magalhães, bravo combatente dos fogos de Monchique, ministro da falta de meios das Polícias e da ausência de policiamento nas cidades. Confiemos no ministro Pedro Nuno Santos, herdeiro putativo de Costa que, enquanto secretário de Estado de Sócrates, propunha o calote da dívida pública para pôr as pernas dos banqueiros alemães a tremer, e que agora ralha com a TAP que não gere, e quer atropelar autarcas com leis tecidas ad hoc. E estava ainda o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, talvez para subscrever jovialmente o fecho de mais escolas, agora públicas; e o ministro dos Estrangeiros, ao telefone, do estrangeiro, talvez com o sorriso com que sublinha as geniais subtilezas que só o próprio vislumbra; e o ministro Nelson de Souza, não se sabe do Planeamento de quê.
Foi pena, em nome da fortaleza, não estar no grupo dos fortes o outro herdeiro putativo, o temperamental Medina, que enquanto secretário de estado da Economia de Sócrates não via o menor problema na despesa e no endividamento; que como senhorito de Lisboa enrubesce, e grita, e transpira à menor contradição; e que lança programas salvíficos de lojas históricas que a Disneylandização da Baixa faz fechar logo a seguir; e que chama nomes e vergasta qualquer órgão do Estado que lhe aponte o esbanjamento e a má gestão.
Que pena serem só nove fora o Medina.
Sobre o vírus e o SNS, diz ao Expresso um dos membros do «grupo forte» que o Expresso não identifica: com «5% de casos graves entope tudo».
Um grupo de médicos do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra escreve: «A mortalidade do Covid não é só a mortalidade do Covid – com um sistema a trabalhar para lá do limite, todas as outras doenças que já antes matavam, matarão mais.»
É naquela equipa dos nove que levou o sistema ao estado em que está que agora nos chamam a confiar.
Um diabo, dois diabos
Costa compôs um sorriso melífluo, afilou o olhar arguto e lançou o verbo sarcástico quando Passos Coelho advertiu para o perigo de um diabo, criatura a que festividades de curto prazo não distraem nem desmobilizam.
Depois, o Bundesbank previu para o curto prazo uma recessão técnica na Alemanha, mas Costa andava entretido a aumentar o número de funcionários públicos dos menos de 660 000 em 2014 para mais de 698 000 em 2019. Mais tarde, em Fevereiro de 2019, a Comissão Europeia advertiu Portugal de que o rácio dívida pública/PIB apresentava «alto risco no médio prazo», e que essa situação «reduz a capacidade da política orçamental para absorver choques macroeconómicos e reduzir [os efeitos das] flutuações económicas cíclicas». Costa, porém, insistia que era virtude levar a dívida até aos 252 mil milhões, mais 2,86 mil milhões do que no fim do governo Passos Coelho, e cogitava fazer ingressar no quadro mais 3000 funcionários públicos, ao abrigo de um Programa de Regularização dos Precários (que ainda promete acrescentar uns milhares mais).
O primeiro-ministro Costa e o Partido Socialista vão dizer-nos, é claro, que a culpa de tudo é de um vírus, como a culpa da bancarrota foi dos bancos americanos e das birras da UE.
A verdade, porém, é que as políticas imediatistas, a satisfação das clientelas, as cativações que permitiram fantasiar o fim da austeridade, deixaram o país impreparado. Impreparado para uma anunciada recessão mundial, quanto mais para uma tragédia global.
A verdade, porém, é que, numa volta pérfida do destino, em vez de um diabo, o primeiro-ministro António Costa acabou por conseguir dois. Ou, como ele prefere dizer – a fingir que todas as causas são externas e baralhando a ordem delas –, ganhou «o risco de juntar à epidemia da doença uma epidemia económica».
E Costa, sair-se-á bem com a crise dos dois diabos? Com a contribuição de camaradas, clientes e media reverentes pode sempre contar. Pode ainda contar com os conformados e os ignorantes, os que vivem sem outra esperança que não os «apoios do Estado», não «comme des moules», mas como ovelhas que, enquanto estivessem a ser tosquiadas, pedissem ao próprio tosquiador os apoios de um agasalho.
Mas, acima de tudo, se a oposição cair na armadilha da convergência e da coesão, todos cantando e chorando de braço dado numa União na Tragédia Nacional, António Costa poderá contar com muito mais.