Se houvesse dúvidas sobre a incapacidade contemporânea para enfrentar o lado mais trágico da política, bastaria examinar os comentários sobre o Brexit, onde toda a gente parece ficar satisfeita com descobrir “erros”, britânicos ou europeus. É tempo de ir além dessa santa simplicidade.

A ideia de David Cameron, com o referendo de 2016, não era provocar o Brexit. Era, pelo contrário, matar de vez a questão europeia que desde a década de 90 divide e corrói a política no Reino Unido. Cameron esperava obter primeiro algumas concessões da UE e assustar depois o eleitorado com a ideia da saída. Parecia uma boa jogada, como no caso do referendo escocês. Acontece que os europeus não lhe concederam nada e que a crise das migrações contrabalançou outros receios. E se Cameron não tivesse arriscado? Talvez estivesse agora a ser destruído pela questão europeia, tal como John Major em 1995, e todos deplorassem ele não ter liquidado a questão com um referendo há três anos.

Theresa May não tem força para impor acordos às facções no parlamento. Mas o problema agravou-se precisamente pela tentativa de May, em 2017, para arranjar essa força, através de eleições antecipadas. Todos contavam que ganhasse, até os seus inimigos. De facto, teve uma enorme votação, que noutras circunstâncias lhe teria dado uma bela vitória, não se desse o caso de os trabalhistas, pelo seu lado, também terem conseguido mobilizar o seu eleitorado. Em vez de aumentar a sua maioria, May perdeu-a e ficou mais fraca. E se não tivesse arriscado? Provavelmente, estaria com os mesmos problemas de disciplina partidária, mas com toda a gente a lamentar que não tivesse feito eleições em 2017 para submeter as facções.

Os azares de Cameron e de May nunca, porém, teriam tido efeitos tão graves sem a intransigência e incompreensão da UE, isto é, da França e da Alemanha. O Reino Unido foi sempre um problema para o eixo franco-alemão. A UE funciona essencialmente como um mercado agrícola e industrial protegido. É um bom negócio para a agricultura francesa e para a indústria alemã. Mas a grande especialidade britânica são os serviços. Ora, os serviços são o sector com mais barreiras dentro do mercado único. Por isso, a UE tem servido sobretudo para abrir o mercado britânico à agricultura e à indústria do continente. Daí o enorme défice comercial do Reino Unido com a UE. A Alemanha e a França, porém, nunca gostaram de abrir excepções. Perante o referendo e depois o Brexit, mostraram-se ainda mais duras. Primeiro, tiraram o tapete a Cameron, não lhe fazendo concessões. Depois, recusaram-se a entender o Brexit como uma questão política e diplomática, preferindo reduzi-lo a um processo legalista e burocrático, com alguns vexames à mistura sobre a Irlanda do Norte e Gibraltar (leia-se a esse respeito a investigação do Político).

Como noutros casos de arrogância, talvez aqui haja sobretudo consciência de uma fragilidade. Os governos da Grécia, da Itália, da Polónia ou da Hungria, cada um à sua maneira, têm sugerido o que poderia acontecer se, de repente, houvesse flexibilidade. O entendimento da política também não é o mesmo dos dois lados da Mancha. No Reino Unido, há muitos políticos convencidos de que a UE não os deixa fazer política da maneira como ela deve ser feita, soberanamente. Mas nos países continentais, quase todos carregados com memórias de ditaduras fascistas ou comunistas, as classes dirigentes têm medo de colocar grandes opções políticas num horizonte de soberania. Daí, a tentação de fazer da integração europeia uma fatalidade jurídica e técnica, em vez de uma matéria de debates e de escolhas políticas e diplomáticas. Mas por vezes, o que não dobra acaba por partir-se.

Visto desta maneira, talvez o Brexit seja menos motivo de indignação ou de chalaça. Mas é tempo de ver as coisas como são, e não como nos convinha que fossem.

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