Durante dois anos, governantes, “especialistas”, “pivots” de telejornais e um senhor que mora ali abaixo e conduz mascarado garantiam que estávamos em guerra. Muitos acreditaram. Até que, para plagiar um bocadinho o meu amigo Tiago Dores, chegou uma guerra a sério e percebeu-se a diferença. E a diferença entre um vírus respiratório e o risco nuclear é significativa, sobretudo se os líderes e as populações ocidentais estão melhor preparados para os falsos combates do que para os verdadeiros. É mais fácil fechar a ralé em casa e multar velhinhas que comem na rua do que desaconselhar, com firmeza e custos eleitorais, um ditador de invadir e massacrar uma democracia. Uma civilização histérica com uma epidemia igual a várias, além de empenhada nos intervalos em políticas “identitárias” e “descarbonização”, não parece grande obstáculo a ambições imperiais. E não é. A fraqueza cheira-se, e o sr. Putin cheirou-a à distância.
O olfacto não é sinónimo de valentia, e a distância não é no sentido geográfico. Sabem aquela mesa com dimensões de um “court” de ténis que o sr. Putin coloca a separá-lo dos raros privilegiados que o visitam? Não é só demonstração ridícula de autoridade: é também medo da Covid. Ao que consta, a criatura está desde 2020 em cuidados extremos para não contrair a doença. À semelhança de tantos, é possível que tenha endoidecido, com a agravante de que, loucas ou sãs, as pessoas comuns às vezes nem sequer podiam aceder a um refrigerante em take-away, e o sr. Putin beneficia de acesso a um certo botão vermelho. Não é bom augúrio que o futuro esteja nas mãos de um indivíduo apavorado por um organismo microscópico. E é um sinal terrível que do outro lado estejam os irresponsáveis que apavoraram sociedades inteiras a pretexto de um organismo microscópico.
O lado a que me refiro é o Ocidente. Pelo meio, há a Ucrânia, afinal a vítima imediata da guerra verdadeira. Não sei se o país está repleto de “neo-nazis”, conforme afiançam o sr. Putin e os comunistas do BE e do PCP. Sei que os alegados “neo-nazis” locais, curiosamente liderados por um presidente judeu, revelam uma bravura que, a Oeste, já apenas conhecemos dos livros – se entretanto estes não desceram ao Index por ofender esquimós ou uma adolescente “trans”. Perante o horror real, Zelensky pegou em armas, ao contrário dos “estadistas” que, perante um coronavírus, se refugiaram atrás de uma mesa ou de retórica autoritária. É compreensível que, vista daqui, a coragem cause estranheza – e fascínio. Num ápice, quase todos desataram a tentar ser ucranianos. Não conseguiram.
É que o amor daquela gente à liberdade não nasceu ontem. Anteontem, os ucranianos foram os europeus menos obedientes às restrições “motivadas” pela Covid (que o governo decretou vagamente e que contaram com a oposição ou a indiferença dos poderes regionais e dos cidadãos). Para não manchar a corrente reputação dos ucranianos junto de defensores da supressão social dos “negacionistas”, prometo não mencionar o lugar europeu da Ucrânia em matéria de vacinação: digamos que não é um lugar próximo do espectacular “civismo” [sic] português. Quem gosta de liberdade prefere-a inteira, e não distingue as essenciais das acessórias. Os ucranianos são uma lição. Por azar, poucos a aprenderam. E é isso que amplia uma tragédia já enorme.
Descontando a escala e as eventuais consequências, a irracionalidade com que se reagiu à Covid não está longe da irracionalidade com que se exige o tipo de respostas susceptíveis de iniciar um conflito mundial e devastador. As multidões que por causa da Covid aplaudiam o colapso deliberado da economia e das cabecinhas hoje reclamam aos berros o provável colapso da humanidade. Sem a iminência de um bom Apocalipse, a rapaziada não sossega. É razoável culpar o medo, sempre o pior conselheiro, por ambas as atitudes, mas medo é o que começo a sentir por partilhar o planeta com tamanha quantidade de transtornados, fanáticos por “novos normais” e “pontos sem retorno”.
O problema da Ucrânia não se prende com a NATO, excepto na medida em que a NATO, os EUA e, por caridade, a UE falharam na dissuasão dos apetites de Moscovo e na correspondência dos desejos de Kiev. Houve um tempo em que teria sido plausível impedir de acontecer o que está a acontecer. Houve um tempo em que importava à América e à Europa exibirem o tipo de força que mantém autocratas na linha, em vez de brincarem às “alterações climáticas” e se despejarem na dependência energética dos autocratas. Houve um tempo em que o Ocidente podia escolher não ser aquilo em que se tornou: uma nulidade amolecida e tendencialmente suicida. Graças aos débeis senhores que mandam nisto, embora sejam incapazes de demonstrar que isto ainda manda alguma coisa, esse tempo acabou.
Desgraçadamente, a Ucrânia vai cair enquanto estado, faltando apurar se e como se prolongará a resistência. A nós, resta-nos cair no cinismo e esperar que o sr. Putin, que constatou a sua impunidade, se fique por ali nos desafios e na carnificina. E esperar que as sanções económicas e uns latidos soltos produzam um milagre. E esperar que a cobardia e a irresponsabilidade dos actuais “estadistas” não os empurrem para bravatas desvairadas. E esperar que as nossas televisões deixem de convidar espécimes do BE e do PCP salvo em programas dedicados à vida selvagem. Vou esperar sentado, na varanda e com um saco de água estagnada na mão, a ver quando passa a primeira máscara Ffp2 azul e amarela.