O Chega revelou uma coisa acerca da presente classe política: ninguém parece disposto ou capaz de reconhecer que as coisas mudaram. Todos preferem imaginar que o advento de um terceiro grande partido, onde antes só havia dois, é um fenómeno efémero. O Chega elegeu deputados em todos os círculos, menos um. Mas a sabedoria do regime ensina que é a história de Cinderela. Chegada a meia-noite, a carruagem voltará a abóbora, e nem o príncipe se lembrará do Chega, tal como já quase ninguém se lembra do Partido do Progresso de 1974 ou do PRD de 1985.
Uns, à esquerda, acreditam que o Chega é, ao fim de 50 anos, uma erupção do antigo salazarismo. É assim que imaginam o regime: uma aldeia islandesa, no sopé de um eterno vulcão fascista. Pedem-nos, por isso, para termos muito medo. Depois, no entanto, explicam-nos que a extinção do Chega não dará muito trabalho. Bastará chamar-lhe nomes feios (racista, etc.) e dar sempre notas baixas a André Ventura. Outros, ainda mais sábios, vêem no Chega apenas um protesto, uma birra do eleitorado. Há gente zangada, em sítios fora de mão, como os subúrbios ou a província. No fundo, porém, não acham que a zanga seja séria. O que explica que se proponham acabar com ela aplicando-lhe uns aumentos de ordenados e pensões, a que chamam “carinho”.
Uns continuam a ter a cabeça em 1975, quando o MFA proibia partidos. Outros ainda estão em 2015, quando para demonstrarem “habilidade” bastava aos políticos contentar os dependentes do Estado. Acontece que o país mudou. E é também por isso que o Chega não é o PRD: porque o Portugal de 2024 não é o Portugal de 1985 nem sequer o de 2015.
O país mudou, tal como todo o Ocidente mudou. Essa mudança é hoje um assunto de conversa tão inevitável como o tempo. É do que se fala à mesa, na barbearia ou no táxi. De facto, só os políticos não falam disso. A causa imediata da mudança está no colapso das fronteiras externas da UE. O acesso de migrantes à Europa está hoje limitado apenas pela geografia e por algum Estado fronteiriço subsidiado, como a Turquia. Em Portugal, os residentes com naturalidade estrangeira duplicaram desde 2015, em menos de 10 anos. Representam 11,6% da população. Um quarto dos bebés são filhos de mães nascidas no estrangeiro. É a maior mudança social desde a industrialização. A classe política diz que precisamos dos migrantes, e tem razão. Mas não bastam as contas da segurança social, nem a vantagem da mão de obra barata, para extinguir a estranheza que uma grande mudança social, quando é brusca e caótica, sempre inspira.
Para muitos, essa mudança tornou-se preocupante sobretudo pela sua conjugação com a cruzada woke, nas escolas e na imprensa, contra tudo o que tem sido a base da coesão social do país e da sua capacidade de integrar outras populações: a identidade nacional, uma história comum, a religião tradicional. Eis a população desafiada a renunciar a qualquer sentido de comunidade, e a conceber o seu país como um simples aeroporto internacional, onde todos estivessem de passagem. Naturalmente, rejeita isso. Porquê tratar essa rejeição como xenofobia? Porque não ver aí o cuidado legítimo e razoável com um modo de vida que aliás sempre esteve aberto a quem veio de fora? Porquê não admitir que a redução da sociedade a um aglomerado de guetos pode comprometer muita coisa? A oligarquia, porém, recusa qualquer debate. Os chamados “populistas” são os políticos que estão a vocalizar, melhor ou pior, responsável ou irresponsavelmente, a apreensão de muita gente com o seu país. Não vão desaparecer só com cancelamentos ou com bodos aos pobres.