Se há coisa que 2020 expôs, até agora, foi a débil coordenação política do governo de António Costa. Esqueçamos a pandemia. O PS, novamente órfão de maioria parlamentar, começou a legislatura sem um rumo definido além dos chavões do semestre europeu (alterações climáticas, transição digital, combate às desigualdades), sem a energia e a novidade da ‘geringonça’, sem adversários de peso (logo, sem combates de peso) e sem a consumação das mesmas alianças (isto é, sem a mesma legitimidade social). Simplificando: o governo de Costa, que simbolizara mudança, deixou de ter algo além de si próprio para representar.
A crise sanitária da covid-19, cuja gestão colheu simpatia popular e partidária, obrigou ao estabelecimento de metas, mas não mitigou algo, agora, à vista de todos: o governo do PS está partido. Quebrou. As divisões e desconfortos que o poder e a popularidade disfarçaram durante quatro anos já não são segredo para ninguém. Vimos isso no embate entre Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestrutras, e o homem a quem António Costa entregou as chaves da TAP, Diogo Lacerda Machado; vimos isso no choque entre Mário Centeno e António Costa sobre os 850 milhões de euros para o Novo Banco, provocando até uma crise política; e vimos isso no apoio que o primeiro-ministro ofereceu à recandidatura por anunciar de Marcelo Rebelo de Sousa, feito à revelia do seu partido, do seu governo e de um congresso já adiado um par de vezes.
Tudo isto dá a ideia – um tanto cómica, é certo – de que a ‘geringonça’, afinal, é o PS – e não o apoio que o Bloco de Esquerda e o PCP lhe forneceram em 2015 para derrubar Pedro Passos Coelho. Olhando para os últimos seis meses de governação, a criatura esquizofrénica, invulgar e funcional já não parece uma metáfora para a falecida solução de governo à esquerda, mas antes a imagem do atual executivo do PS, sozinho. A coligação interna entre ideólogos joviais (mas com aparelho), contabilistas sorridentes (mas com CV) e colegas de curso do primeiro-ministro (Cabrita, Siza, Lacerda, etc.) está, lentamente, a desfazer-se. O tempo, as ambições e as convicções, domados e dirigidos por Costa nos últimos anos, começaram a transbordar da taça. A dita ‘geringonça’, no fim do dia, eram os senhores. E tudo isto, se repararmos, foi independente da pandemia. Teria acontecido sem coronavírus.
Ora, a estratégia de Rui Rio, de desgaste contínuo e gradual ao governo, está intimamente ligada a este diagnóstico. Na crise política do Novo Banco, por exemplo, Rio violou uma tradição tácita do PSD e ninguém reparou. Um líder do PSD não pede, por regra, demissões ao governo. Rio, no entanto, fê-lo. António Costa mentiu à Assembleia da República sobre 850 milhões de euros e Rio não pediu a sua demissão; pediu a do seu ministro mais popular, Mário Centeno. E Rio não apontou baterias ao primeiro-ministro, depois de este ser desmentido pelo ministro das Finanças, por uma razão simples: Rio quer que Costa esteja exatamente onde está, a fritar no lugar, a não escapar à inevitabilidade que todas as crises trazem: impopularidade.
O trabalho do presidente do PSD, nos últimos três anos, tem sido esse: fundir o interesse estratégico do seu partido à noção de interesse nacional do seu país. Neste momento, as agulhas estão a alinhar-se. Rio não apoia, Rio segura. Rio não derruba o PS, Rio aguarda a sua queda. Tem sido, aliás, bastante repetitivo quanto a essa intenção. Está há anos a dizer-nos que “as eleições não se ganham, perdem-se”. O modo como renegou a herança e o legado do passismo, a sua reeleição como líder social-democrata, a forma como nos habituou a não antagonizar ninguém apesar de liderar a oposição – tudo isto fez com que o cronómetro do tempo político, como já aqui escrevi, passasse para as suas mãos. Depois de se barricar no partido, quer barricar Costa na crise que aí vem.
Até podemos não subscrever nada disto, mas seria ingénuo não reconhecer o jogo tático – talvez demasiado linear, talvez excessivamente óbvio, talvez quase demagógico –, mas, ainda assim, racional. Rio está a fazer tudo certo para o poder lhe cair no colo. Resta saber se tem os braços para merecer esse poder. Um pouco de dignidade, creio, faria bem ao país.
Na ‘sala de espera’ para São Bento que o congresso lhe concedeu – após três resultados eleitorais desapontantes –, Rio vai deslizando, ocasionalmente, dessa espera para tentações circenses. Virar as costas à sua bancada sob aplausos de Ferro Rodrigues, chumbar todas as propostas do hemiciclo e depositar no governo a decisão de aprovar o que entender para, uma semana depois, apresentar propostas idênticas às que chumbara, apelidar a democracia parlamentar de “folclore”, dizer aos seus militantes que criticar o governo é “anti-patriótico” para rapidamente se sentir forçado a criticá-lo, comparar a imprensa a “fábricas de sapatos”, insinuar que os seus opositores estão “de quarentena” neste jornal, entre outras tiradas de instinto populista sobejamente apurado, são atitudes que ou dizem muito mal de Rui Rio ou dizem muito mal do que Rui Rio pensa sobre quem nele vota.
Há uns dias, aqui no Observador, um deputado seu apoiante escrevia que o presidente do PSD teria razão não só antes do tempo, como também “depois do tempo”. Acredito que sim. Convém é não transformar a ‘sala de espera’ num circo. Para isso, já temos o governo.