No mês de Março do ano passado, os portugueses começaram a ser advertidos para a elevada probabilidade de se terem de confrontar com um vírus perigoso, oriundo da China, sobre o qual, poucas semanas antes, as autoridades sanitárias nos tinham garantido que jamais cá chegaria.

Assustados com o que diariamente a comunicação social nos ia mostrando sobre o que estava a suceder em Itália, Espanha e Inglaterra, ainda no final daquele mês, contrariando a sensibilidade dominante no governo, boa parte dos portugueses recolheu a casa e colocou-se em confinamento voluntário muito rigoroso. Pouco tempo depois, o vírus chegou.

No final de Maio, o ambiente começou a desanuviar. Baixaram os contágios e as mortes. Estávamos a conseguir “achatar a curva”, graças às medidas que tinham sido tomadas. Pelo governo, claro.

Quase em uníssono, governo, comunicação social e partidos políticos louvaram o “milagre português”, e o dr. Costa foi hossanizado e projetado aos píncaros da popularidade. O país acreditou, sinceramente, que fora graças à atuação do primeiro-ministro, juntamente com as autoridades de saúde e os ministros da área, que, ao contrário do que acontecera noutros locais, tínhamos saído da crise com uma epidemia light, sacrifícios e vítimas muito reduzidos.

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Explorando o sucesso, António Costa garantiu-nos que a vitória sobre a pandemia era a derrota do “liberalismo e do neoliberalismo”, porque fora graças ao Estado e ao governo, orientados sob sua prodigiosa clarividência, que se conseguira evitar o pior. Num momento de delírio parlamentar, uma deputada do PS disse mesmo que “o vírus teve talvez o azar de encontrar pela frente um povo experimentado e um governo capaz”. A bancada socialista aplaudiu com júbilo e fervor.

Nessa ocasião, o governo e os partidos que o apoiam exaltaram o altruísmo e a infalibilidade do SNS e atacaram “os privados, que só querem o lucro”. Todos teríamos aprendido a lição de que, sem o Estado, estaríamos condenados à tragédia. Aproveitou-se uma desgraça para se fazer ideologia e propaganda governamental e partidária, dividindo os portugueses e pondo-os uns contra os outros: o socialismo é bom, o liberalismo é mau; o “público” pensa em todos, “os privados” só pensam no lucro. Durante meses não se calaram com isso.

Também por essa altura houve quem advertisse para a forte probabilidade de uma segunda e até talvez de uma terceira vagas a partir do Outono, com o regresso do frio. Alguns lembraram que, na gripe espanhola do princípio do século XX, a segunda fase da pandemia fora muito mais violenta e mortal do que a primeira. Logo o governo nos asseverou que estavam a ser tomadas todas as medidas necessárias para, mais uma vez, se evitar o pior, até porque o país, nas palavras de António Costa, “não aguentaria um novo confinamento”. Já no mês de Outubro, pressentindo-se a tragédia, a Ministra da Saúde tranquilizou os portugueses, dizendo-lhes que não faltavam camas afetas ao COVID nos nossos hospitais. Esse número seria de dezoito mil. Hoje, com cerca de seis mil leitos ocupados, o sistema está à beira da rutura.

Em Setembro, os números voltaram a subir e a ser preocupantes. Imediatamente o dr. Costa começou a tomar medidas. E elas foram tantas, tão variadas, contraditórias e disformes entre si, sobrepostas umas em cima das outras e sucedidas a um ritmo temporal alucinante, que os portugueses deixaram de compreender a sua racionalidade e até a eventual necessidade de as terem de cumprir. Havia concelhos com medidas restritivas e outros sem elas. As restrições mudavam consoante as horas e os dias da semana, todas as semanas. Faziam-se coisas ininteligíveis, como obrigar os cidadãos a amontoarem-se nos supermercados nas manhãs dos sábados e domingos. Proibiram-se as pessoas de circular entre concelhos nesses dois dias de descanso semanal, para retomarem, de segunda a sexta-feira, a labuta diária, circulando em transportes públicos pejados de gente. “Não há qualquer evidência de que o vírus seja especialmente transmitido nos transportes públicos”, repetia exaustivamente, como um mantra, o spin do dr. Costa. Nas escolas, com milhares de crianças, jovens e adultos a frequentarem-nas, também não.

A confusão e o cansaço instalaram-se entre nós e começou a nascer a descrença na utilidade de se tomarem precauções para evitar uma doença para a qual até já havia uma vacina eficiente. Que, garantiram-nos, nos seria aplicada numa campanha de vacinação exemplar. O Natal e a Passagem de Ano foram as cerejas em cima do bolo. Neste momento, assistimos e vivemos um drama de proporções imensas e as decisões do governo não surtem efeitos relevantes, como os números desgraçadamente evidenciam. Com tantas medidas e decisões tomadas, o que está, então, a falhar? “Os portugueses”, responderam-nos, em uníssono, o dr. Costa, o Presidente da República e o governo.

Mas não foram os portugueses os responsáveis pela hecatombe que estamos a viver.

No notável livro The Road of Serfdom, concluído em 1943, Friedrich Hayek demonstrou que a planificação estatal das sociedades humanas falha quase sempre. O tecido social é composto por uma malha muito fina, cuja complexidade não permite uma tecedura verticalmente racionalizada. As sociedades humanas são demasiadamente complexas para poderem ser programadas por um planificador central. Compõem-se de milhões de indivíduos, cada um deles com os seus interesses e objetivos de vida, que diariamente praticam um número infinito de ações, cujas relações causais e consequências nenhum espírito humano poderá abarcar, antever, calcular ou direcionar. Se a crítica de Hayek foi, nessa obra, essencialmente orientada para a Economia, principalmente para a planificação das sociedades socialistas de influência soviética, ela estendia-se, porém, a todos os efeitos perniciosos do estatismo, que noutros trabalhos demonstraria.

A crença em que um reduzido número de pessoas pode, a partir do Estado e do governo, definir a vida de milhões de seres vivos é a essência do estatismo, a nova ideologia dominante no nosso tempo. Apesar de derrotada nas suas experiências mais extremas do fascismo e do comunismo do século XX, conseguiu sobreviver a uma morte que deveria ter sido natural e hoje abarca as mais prolixas formas de pensamento da esquerda e da direita. Ainda que mais suave e mais branda, ou talvez mais sub-reptícia, não deixa de ser uma profissão de fé, quase uma religião.

Fruto dessa cegueira ideológica, António Costa convenceu-se de que, juntamente com o seu governo de competências e ilustres sábios, seria capaz de “controlar a pandemia” a golpes de vontade e com decretos do Conselho de Ministros. Já não lhe bastava planear a economia e a política do país, tinha também de dar ordens a um vírus. Um vírus que não se vê, de que não se sabe ainda muito e sobre o qual quase todos os dias nos surgem «cisnes negros». Desse modo, em vez de fazer o que poderia ser feito por qualquer governo – preparar, a montante, reforçando os meios e protegendo aqueles que já se sabia serem mais vulneráveis -, resolveu aguardar o que viria a jusante, para atuar nesse momento e, de novo, deslumbrar os crentes. Os resultados estão à vista de todos.