1 Já prestes a chegar, passada aquela curva mais íngreme quando se desce para a praia, a expectativa sobe na antevisão da cor da bandeira. O ritual repete-se de ano para ano: bandeira verde seria demasiado “whisful thinking”, talvez amarela? Mas céus, tudo menos a vermelha, mãe de todas as impossibilidades. Desta vez, porém, não havia bandeira no areal. E também já não havia toldos. Nem havia banheiros. A ausência dos toldos às riscas azuis e brancos, até ali sempre alinhados como soldados de um exército protector, fizera subitamente da areia um outro oceano infinito enquanto eu imaginava, no barracão da praia, uma montanha de riscas de pano já bem dobrados, até para o ano. Era o fim da época. Provavelmente, alguém avisara, mas não dera por isso, nunca deixo que o Verão me fuja ou me arrede dele, e mais uma vez partira afoita para o meu Atlântico –  meu, do mesmo exactíssimo modo em que uns sapatos, ou um automóvel, podem ser meus.

O  mar ali é fértil em susto e avaro de calmaria, mas paciência. Nunca foi de outro modo e já nos conhecemos há tanto tempo que julgo saber-lhe as correntes, os baixios e outros perigos. Costuma ter a cobri-lo uma tela de neblinas obstinadas e às vezes – muitas vezes –  cachos de nuvens de um esbranquiçado espesso, que parecem misteriosamente ter ali estacionado para sempre. Paciência. Outra vez. Requiem por um dia Verão. Mas nos chamados “dias bons”, com os deuses de feição, o mar amável, a bandeira verde, os sentidos ficam de imediato alerta, pressentindo o dom. São dias mais raros e, por isso, sorvidos com volúpia. Poucas coisas conheço de mais totais, do que um banho de mar no Atlântico num dia azul de Verão e nunca por nunca ser qualquer outro mar – e sabe Deus como o Mediterrâneo me inspira – teve a primazia.

E nos dias “assim-assim”, faz-se de conta. São os de bandeira amarela, entalados entre a glória do Verão (o verde da bandeira)  e o repúdio da temeridade, sinalizada pelo vermelho. Nesses dias, hesitamos entre a tentação e o receio do mar, traiçoeiro, dizem, e esperamos: talvez as águas sosseguem, ou o vento mude, ou… Anda-se a pé, dobra-se a esquina das rochas, ou vai-se até à lagoa, o mais manso refúgio para os esfaimados das ondas como sou. Mas não gosto dos dias de bandeira amarela, são incaracterísticos, de nem uma coisa nem outra, quase inócuos. (Lembram-me um coro de hesitantes, ou alguns vultos da República, sempre encostados ao conforto mole do “nim”, parecido com os muitos “mas” daquele amarelo praieiro e nem sei porque me lembrei disto agora.)

Mas seja qual for o humor ditatorial da bandeira, resta-me sempre, nesta praia ou nas outras daqui – e não se sabe qual a mais imperiosamente oceânica -, a certeza do cheiro a maresia, como se sabe, o mais inebriante dos cheiros. E se o Ruy Belo estivesse agora ao pé de mim, percebia muito bem isto da maresia e destas ondas. E de como pode ser absoluto o seu efeito sobre a “anima” de uma pessoa, ele que sentia como ninguém estas moradas atlânticas e tanto as procurava.

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Mas agora já não há bandeira, nem toldos, nem banheiros. O Verão partiu, a praia é hoje uma imensa terra de ninguém fustigada pelas arrebentações prodigiosas do equinócio. É o fim da época, com a fininha melancolia que a tinge. Deve haver poucas coisas tão tristes como o fim da época num lugar de Verão do qual se esteve (quase) como numa questão de vida ou de morte.

2 Tal como o Verão, aquilo que prezamos como democracia estará também em fim de época? A liberdade, de pensamento e gesto, o Estado de Direito, a certeza da independência entre os seus três poderes, insubstituíveis traves mestras do regime democrático; o cumprimento da lei, a importância do Parlamento, o trânsito partidário, o poder do voto, o valor do debate, uma “media”com saúde democrática… Tudo isso, enfim, que nos educa para uma cidadania decente – e nos protege e defende -, parece estar nalguns países a atingir o seu prazo de validade com ameaçadora naturalidade. Admirável naturalidade, de resto, e por isso deixo aqui um caso, que a ser verdade, volta a radiografar bem a dimensão da ameaça. Ocorreu no México. Eu sei que é longe e pouca intimidade temos com o país latino tão distante, mas o exemplo é bom. Foi protagonizado pelo seu Presidente, Manuel Lopez Obrador, em cuja eleição grande parte do país depositou as maiores esperanças, após décadas (demasiado) longas de ocupação do palco político pela direita. Pois bem: do dia para a noite, Lopez Obrador decidiu proceder a um “referendo” para que os mexicanos se pronunciem se sim ou não  devem ser julgados os presidentes da República que antecederam Lopez Obrador no poder. São cinco, nenhum anda a contas com a Justiça, nenhum tem processos judiciais em curso ou, sequer, abertos. Segundo o que leio (El País) “cabem poucas dúvidas jurídicas sobre o impossível encaixe legal de um gesto destes. Numa democracia  é a Justiça, os seus juízes e fiscais que tomam estas decisões. E não o poder executivo, nem o legislativo, nem as a votações populares”.

Que o acto é exclusivamente político, é verdade. Que um presidente tenha ousado semelhante ideia e avançado para a sua concretização, parece mentira. O México será muito longe, mas longe ou perto, as regras da democracia são únicas e as mesmas, o mau uso que delas se faz é que começa a rolar para os abismos. Isto, para variar das nossas poucas-vergonhas caseiras e já repararam como elas se tornaram sucessivas? Todos os dias há um novo episódio, como nas séries, mas infelizmente a nossa é péssima.

3 E o peso “deste” fim de época? Os optimistas dirão que se trata de um intervalo num percurso de normalidade conhecida, os pessimistas, como eu, chamam-lhe fim de época: sem medo das palavras, ou sabendo lidar com elas. O fim da “normalidade “ que era a nossa; do como éramos, fazíamos, escolhíamos e nos relacionávamos; o fim dos códigos que regiam esse mundo, onde, mais forte ou mais frágil, havia chão debaixo dos pés e há aqui qualquer coisa de quase apocalíptico com a qual vai ser preciso aprender a lidar. Aprender (literalmente) uma nova vida.  O solo que pisamos hoje é deslizante e traiçoeiro, vive-se às apalpadelas, no escuro do desconhecido. Os mais racionais consolam-se com (excesso?) a esperança de uma vacina que “qualquer dia estará aí”, confiando até que o Inverno pode não ser tão madrasto quanto as previsões ou, até (!), que a energia vital da vida vencerá o medo e a dúvida. No entretanto, não se sabe com quem aprender estes dias, nem em que livros ler de que passarão a ser feitos. Ou a que fonte ir bebê-los.

Perguntas sem respostas, claro. Talvez seja melhor assim. Banir a curiosidade e dispensar a imaginação, em vez de antecipar  – mobilando-a – a nova época impressa globalmente no mundo, talvez não seja má ideia.

P.S.: Li e tive muito pena. Imensa pena. A carta enviada por um grupo de católicos ao Patriarca de Lisboa, por ter ele assinado um manifesto onde se fundamentavam as discordâncias quanto ao ensino da disciplina de Cidadania e da punição atribuída a dois alunos que deixaram de frequentar essas aulas, enferma do mesmo que aqui apontei há oito dias: o nível de irracionalidade e “inseriedade” que afecta hoje, ferindo de morte, qualquer debate intelectual e político. Segundo li no título de um jornal, D. Manuel Clemente e um outro Bispo estariam em má companhia nesse manifesto, porque os seus signatários são de extrema direita (quais?). No corpo da notícia já só seriam “alguns” (quais?). Haverá “justificação” mais à mão, mais corriqueira, mais inserida no ar do tempo, mais politicamente correcta, mais obsessiva e, claro, mais falsa? Ocasião desperdiçada. Mas pior: como católicos que se afirmam, escrevem e assumem, a figura de D. Manuel Clemente, o seu percurso, o seu exemplo, a sua cultura, não mereceriam a estes signatários uma confiança no seu critério e no entendimento dos actos que pratica? Ou seja, não hesitaram, em nome do tal ar do tempo – esse sim, “sagrado” – em lhe passar um atestado de irresponsabilidade cívica, coisa muito feia.  Quem esperava outro fôlego e melhor substância neste escrito católico, não se terá lembrado que a boa fé e a seriedade moral e intelectual também podem estar em fim de época.