O Tribunal Constitucional, por maioria, considerou que a propaganda nas escolas da ideologia associada à “autodeterminação da identidade de género” não podia resultar de uma mera medida administrativa. O facto de o governo ter pensado o contrário revela o carácter autocrático do activismo “woke” que inspira essas iniciativas. Muitos dos seus temas – a “construção social dos sexos”, o “racismo sistémico”, o “patriarcado”, etc. — surgiram na “contra-cultura” da década de 1960, mas este não é um movimento vindo de baixo. Nas universidades, é conduzido pelos professores; na economia, é apoiado pelas grandes multinacionais; na sociedade, é popular entre as elites; na comunicação social, é promovido pelos órgãos ditos “de referência”. É um movimento do poder estabelecido, e tem como objectivo a intensificação do controle da sociedade por esse poder.
Para compreendermos o ”wokeism”, temos de começar por notar que não há hoje qualquer divergência política significativa nos países ocidentais sobre a liberdade e a igualdade no que diz respeito a opções sexuais, modos de vida ou minorias étnicas. Todas as constituições proíbem discriminações com base em tais pressupostos (sim, até a da Hungria). As sondagens de opinião sugerem maiorias consistentes nesse sentido (por exemplo o Minorities Report 2017 da ILGA-RIWI Global Attitudes Survey). A discussão, portanto, não tem a ver com direitos, mas com outra coisa: a visão do mundo em que, segundo o activismo “woke”, devem estar fundados esses direitos, e o papel do Estado na promoção dessa muito particular visão do mundo.
Para a maioria das pessoas, esses direitos correspondem naturalmente à igualdade e à tolerância que deve existir entre seres humanos pacíficos numa sociedade decente. Para o movimento “woke”, não. Para um “woke”, as minorias (sexuais ou étnicas) nunca serão verdadeiramente livres apenas pela tolerância, ausência de discriminação legal ou igualdade de direitos. Só serão livres quando a sociedade em que um dia sofreram discriminação for desmantelada e as suas normas e tradições erradicadas. Por exemplo, quando todas as identidades, mesmo as que parecem derivar de dados biológicos, forem concebidas como “construções sociais” (como pretende a “autodeterminação da identidade de género”); quando as relações familiares estiverem deslegitimadas como meros exercícios de violência; ou quando a memória histórica das nações tiver sido devidamente apagada, e os países ocidentais forem reduzidos a uma espécie de aeroportos internacionais, onde todos passam e a que ninguém pertence.
Para obter esse resultado, o movimento “woke” não conta com a opinião pública, mas com a coerção do poder político. Para os “woke”, é ao Estado que compete impor a “autoderminação da identidade de género”, promover a deslegitimação da família, zelar pelo apagamento da memória histórica, e vigiar a linguagem. Não estamos perante uma libertação, mas perante a mais audaciosa proposta de aumento do poder do Estado no Ocidente. A autonomia do indivíduo e da sociedade perante o poder político dependeu sempre do facto de haver coisas que se supunha estarem para além desse poder. Por exemplo, a natureza, isto é, aquilo que é dado na experiência humana, ou a história, isto é, aquilo que foi elaborado pelos seres humanos ao longo de muitas gerações. É precisamente isso que agora se pretende suprimir a golpes de Diário da República: tudo deve ser refeito pelo Estado, tanto a natureza como a história. A este tipo de projectos, nos anos 1930, chamou-se muito apropriadamente “totalitarismo” – no sentido de uma política que se pretendia “total”, não deixando nada fora do seu alcance, na esfera pública e na esfera privada.
A primeira base do movimento está na extrema-esquerda, que desde 1989 procura ressuscitar a revolução. Por aí, não há novidade. O que é inédito é o apoio que encontrou na esquerda moderada. Há umas décadas que esta esquerda sente que, perante a evolução demográfica e a escalada das dívidas públicas, não tem bons argumentos para defender os seus modelos sociais. Podia ter arranjado outros. Preferiu constranger o debate público, através da desqualificação e do “cancelamento” do adversário. Rendeu-se deste modo à “guerra cultural” e fez da extrema-esquerda a sua tropa de choque. É uma estratégia de poder. Explora cinicamente a confusa mentalidade pós-cristã das classes médias, a quem dá jeito acreditar que, para usufruírem as suas riquezas com boa consciência, agora que o padre já não as absolve dos pecados, lhes basta saberem usar os pronomes certos para se referirem a uma “pessoa não binária”.
O movimento “woke” tem dois aspectos de que vale a pena falar. O primeiro é o de uma nova divisão social, entre a elite “woke” e aqueles a quem Hillary Clinton chamou “os deploráveis”. As classes mais pobres e menos qualificadas constituem o relicário dos costumes e das tradições que é preciso eliminar. O “povinho” menos qualificado já perdeu o emprego com a globalização. Agora, deve também perder as suas referências culturais. No imaginário “woke”, a populaça está na situação dos “indígenas” das antigas colónias, forçados a “assimilarem-se” à nova “civilização” no caso de desejarem ser tratados como iguais. À resistência dos novos “indígenas”, chama-se agora “populismo”.
O segundo aspecto é propriamente político. Durante anos, esquerda e direita discordaram sobre o tamanho do Estado, mas estavam geralmente de acordo sobre coisas como por exemplo os direitos, liberdades e garantias, ou a tradição histórica nacional. O PS promoveu a Expo-98, em que a expansão portuguesa dos séculos XV e XVI foi comemorada, segundo as modas da década de 1990 , como “intercâmbio” entre os povos. Foi há apenas 20 anos. Entretanto, a história deixou de ser comum. Hoje, há deputados do mesmo PS que gostariam de destruir o Padrão dos Descobrimentos ou que lamentam que o 25 de Abril não tivesse muito “sangue” e muitos “mortos”. A direita já não é “fascista” apenas para o PCP e o BE.
Os pobres de espírito que, à direita, acreditam que a melhor estratégia é renderem-se na “guerra cultural”, para depois ganharem a “guerra económica”, não percebem o que se está a passar: o tipo de poder político que está a tentar levantar-se através da guerra cultural não vai ser mais “liberal” na economia. O consenso chegou ao fim. Por enquanto, ainda nos mantemos ligados pelas regras do jogo: os governos dependem de eleições, e a legislação tem de respeitar a ordem constitucional. Vai ser preciso defender essas regras.