1. A Constituição da República Portuguesa diz assim, no art. 277.º: «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou [infrinjam] os princípios nela consignados». Por sua vez, no art. 6.º, a Constituição consigna expressamente o princípio da subsidiariedade do Estado, nestes termos: «O Estado é unitário e respeita na sua organização e funcionamento […] o princípio da subsidiariedade…».

2. É portanto claríssimo: se o Estado, em matéria de educação escolar, não respeita, no «seu funcionamento» — funcionar é exercer a sua função — o princípio da subsidiariedade do Estado, então é óbvio que o Estado viola a Constituição, porque viola um princípio constitucional.

3. A Constituição da República Portuguesa, no art. 281.º, diz que «O Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, […] a ilegalidade de quaisquer normas constantes de acto legislativo com fundamento em violação de lei com valor reforçado». Ora, a Lei de Bases do Sistema Educativo é uma lei com valor reforçado; e diz muito claramente que, no ensino básico, se pode «proporcionar» (não diz que é obrigatório!) «a aquisição de noções de educação cívica e moral», mas acrescenta… «em liberdade de consciência» (cf. al. n) do art. 7.º).

4. Conclusão: devem ser declaradas ilegais «quaisquer normas constantes de acto legislativo» que excluam a liberdade de consciência na disciplina escolar obrigatória de educação cívica — ou educação para a cidadania, vale o mesmo.

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5. A educação, como direito humano, não é à medida do que cada um de nós quer. Ou do que o Governo quer. Tem de ser entendida como a Declaração Universal e a Constituição portuguesa a definem. Em primeiro lugar, enquanto direito de liberdade pessoal, como diz muito claramente a Constituição: «É garantida a liberdade de aprender e de ensinar» (art. 43.º). Pela sua parte, a Declaração Universal diz que «Toda a pessoa tem direito à educação». Mas, «direito à educação» quer dizer que a pessoa tem direito a educar-se, merecendo, para isso, as necessárias condições (a cargo do Estado). Não quer dizer que tem direito a que o Estado ou os outros o eduquem contra a sua liberdade. Isso seria atribuir à pessoa um direito a que outra pessoa domine a sua própria liberdade. Seria absurdo. Se fosse assim entendida, a educação deixaria de ser educação, para ser uma domesticação: a pessoa humana teria direito a ser domesticada. Por isso, a nossa Constituição diz que a educação visa «o desenvolvimento da personalidade» (art. 73.º); e a Declaração Universal diz que a educação visa «a plena expansão da personalidade humana» (art. 26.º). Ora, tanto o desenvolvimento da personalidade, como a expansão da personalidade, são direitos pessoais de liberdade.

6. A Declaração Universal e a Constituição reconhecem expressamente aos pais o direito e o dever de educarem os seus filhos. Mas não reconhecem o mesmo direito ao Estado. Ao Estado incumbem de criar condições materiais e institucionais de educação; mas em nenhuma lei deste mundo se atribui ao Estado o direito de ser ele mesmo o educador. A nossa Constituição até o proíbe de programar a educação, quanto mais de educar: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas» (art. 43.º).

7. A Constituição é clara em dizer sempre, nos lugares devidos: direitos e deveres humanos. E não diz só direitos. Mas enquanto a obrigatoriedade de cumprir os deveres, dr forem correspondentes ao respeito dos direitos de liberdade (por exemplo, dever de respeitar a vida e a liberdade dos outros), são impostos de forma universal a todos os cidadãos e às próprias autoridades públicas (porque são deveres de abstenção ou de acção mas apenas em situações limite), o cumprimento de deveres correspondentes a direitos sociais só podem ser impostos como de cumprimento obrigatório em termos concretamente determinados pelas leis. Por exemplo: aceita-se um dever pessoal de todos os cidadãos contribuírem para o bem comum. Mas o cumprimento deste dever só pode ser politicamente exigido nos termos concretos da sua determinação por leis que — note-se bem — têm de respeitar os fundamentais direitos de liberdade. É o que diz o princípio do art. 18.º da Constituição: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.» E, não se bastando com isto, a Constituição acrescenta ainda: «As leis restritivas de direitos liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais». Ora esta restrição constitucional aplica-se à educação escolar obrigatória, uma vez que, por ser obrigatória, restringe as liberdades.

8. Assim, impor uma escolarização obrigatória «básica», ou «elementar», como lhe chamam a Constituição e a Declaração Universal, só pode admitir-se constitucionalmente se não violar «a extensão e o alcance do conteúdo essencial das liberdades de aprender e de ensinar». Não pode, portanto, ir ao ponto de excluir a liberdade de consciência, que é o mínimo das liberdades humanas — como o actual Governo defende excluir na disciplina de educação para cidadania, no caso dos alunos de Famalicão. Com a agravante de ser sobre crianças, esta obrigatoriedade excede tudo quanto se possa imaginar de totalitarismo político sobre as consciências.

9. A escolaridade obrigatória é prioritariamente obrigatória como «dever do Estado»: dever de o Estado proporcionar a todos os cidadãos os meios de eles exercitarem as suas liberdades de aprender e de ensinar — e de, assim e só assim, também cumprirem os seus deveres de contribuir para o bem comum. O cumprimento deste dever de liberdade dá sentido prioritário ao «direito à educação» — que é um direito pessoal dos cidadãos, e não é um direito do Estado. A um direito dos cidadãos «à educação», não pode corresponder um direito contrário de o Estado educar os cidadãos. Se fosse assim, em vez de um dever de o Estado satisfazer o direito à educação dos cidadãos, teria o Estado um supra-direito sobre o primeiro direito, transformando-o num dever. Não: ao direito à educação da pessoa humana corresponde um dever do Estado. Se Estado não cumprir este dever, viola a Constituição por omissão. Mas se um cidadão não aceitar a concreta educação oferecida pelo Estado, por ser ideológica ou partidária, do mesmo passo que, em liberdade de consciência, não prescinde de cumprir o dever de se educar, de ser educado pelos pais, nem de ser educado escolarmente mas em liberdade de consciência, então não viola a Constituição. Antes se reclama da protecção da Constituição.

10. É preciso distinguir entre deveres cívicos (deveres de cidadania) e deveres de cumprimento estritamente obrigatório. Por exemplo. O dever de votar é um dever cívico; assim mesmo declarado pela Constituição: «O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico» (art. 49.º). E é evidente que é um dever cívico muito importante; porque, se não for cumprido por ninguém, não há democracia. Mas depois de debater directamente esta questão, a Assembleia Constituinte recusou impor esse dever como obrigatório.

11. Outro exemplo. O dever de um cidadão se preparar minimamente para, se necessário, defender a Pátria e as liberdades numa guerra legítima, é sem dúvida um dever «de cidadania». Mas a nossa Assembleia da República revogou a obrigatoriedade do tradicional serviço militar obrigatório.

12. O dever de cada pessoa se educar, na ordem familiar, na ordem social e, complementarmente, numa escola, exercitando sempre a sua liberdade e nunca contra a sua liberdade, também pode ser considerado um dever cívico, porque é do interesse da comunidade, além de ser do interesse pessoal. Mas então porque é que este dever cívico, quando na educação escolar, há-de ser de cumprimento obrigatório? E nos termos exactos (e não noutros) em que o poder político partidário o quiser determinar? Sem sequer direito de objecção de consciência? Porque há-de ser obrigatório ao contrário do dever de votar? E do dever de serviço militar durante o tempo de paz? Que são deveres de cidadania, mas não são obrigatórios?

13. Sim, é possível e legítimo falar de um dever de escolaridade. Mas não como um dever de conteúdos imperativamente determinados pelo Estado, absolutamente ao dispor das maiorias partidárias parlamentares de cada momento, a ponto de os cidadãos nem terem direito de objecção de consciência. Quem entender que as maiorias parlamentares partidárias têm este poder ilimitado, precisa de fazer um curso de educação para cidadania.