Dino d’Santiago, cançonetista que descobri quando se filmou a discutir com um chofer de praça, pede um hino nacional “menos bélico, que incentive menos às guerras”. É engraçado o sr. d’Santiago ter formulado o pedido perante uma audiência que incluía personalidades como Marcelo Rebelo de Sousa, António Guterres e Francisco Pinto Balsemão, garantias suficientes de que a rendição seria a atitude de Portugal em qualquer guerra, mesmo aquelas em que nem sequer entrasse. Além disso, o sr. d’Santiago frequenta com agrado a Festa do “Avante!” e, pelas alusões à Rússia, aprecia o tipo de pacifismo que os comunistas adoptaram durante o pacto Molotov–Ribbentrop.
Tais pormenores não me impedem de concordar em parte com o sr. d’Santiago: A Portuguesa é uma tristeza. A ressalva prende-se com o facto de não ser só o belicismo a incomodar-me, e sim o gongorismo tosco da coisa, com “egrégios”, “jucundos” e uma métrica que a partir da segunda, e não por acaso pouco interpretada, estrofe anda às cabeçadas com a melodia (“Desfralda a inviiiiiiicta bandeeeeeira”). A bazófia guerreira foi, com típica originalidade, roubada ao “Aux armes, citoyens” de A Marselhesa, que também emprestou o estilo do título. Para desenjoar das influências, A Portuguesa plagiou generosos pedaços musicais do antigo Hino da Carta, em vigor na monarquia e de que uns 20% da letra é a palavra “Constituição”.
E depois há os versos: “Brade a Europa à terra inteira:/Portugal não pereceu!”, raro momento em que um cântico de exaltação patriótica refere, se bem que para o desmentir, o óbito da própria pátria, “imortal” que fosse. Aliás, o “Levantai hoje de novo” reforça a ideia de que o protagonista do hino é um moribundo que apresentou melhoras, e não uma potência mundial. É quase surpreendente que nos sexto e sétimo versos de uma imaginária quarta estrofe não haja o “Ventilador desligado!/Já respira sozinho, obrigado!”.
Em geral, os hinos nacionais tendem para o foleiro. O nosso nasceu por reacção ao Ultimato dos ingleses, que nestas matérias não têm mais sorte. God Save the King (ou “Queen”, pois num assomo de vanguarda a cantiga é adaptável ao “género”) é uma prece a Deus para abençoar o soberano de um povo que pelos vistos depende pouco de si e do soberano e depende imenso da vontade divina (“Ó Senhor, disperse os inimigos [do rei]/E faça com que caiam/Confunda a sua política/Contrarie os seus truques velhacos”). “Truques velhacos”? Valha-lhes Deus, de facto: antes as “brumas da memória”. Não admira que o autor de God Save the King seja anónimo.
A única vantagem do hino britânico é o tamanho: é breve e passa depressa. A brevidade não é uma virtude do hino francês, que se estica muito para lá dos limites das sevícias. São sete estrofes de fúria xenófoba, curiosamente compostas a poucos meses de o Terror revolucionário desatar a decapitar franceses, perdão, inimigos do povo (para o fim, decapitou os amigos). Em abono desse manifesto de ódio cego, a melodia do refrão não é desengraçada.
À semelhança de Portugal, as demais colónias culturais francesas padecem de hinos intermináveis. O do Brasil estende-se tanto quanto a mítica Covid longa, com a atenuante de o arranjo habitual ir em cavalgada a ver se despacha aquilo. Pelo meio, contorce-se no divertido simbolismo da época: há para ali “fúlgidos”, “fulguras”, “flâmulas”, “florões” e ainda estamos no “f”. No “l”, há “lábaros”. No “v”, há “vívido”, que não rima com “límpido”, nem “símbolo” rima com “flâmula”. Numa versão anterior, o desembargador Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva, que estudou em Coimbra e devia julgar-se sueco, agradecia assim a hospitalidade dos portugueses: “Homens bárbaros, gerados/De sangue Judaico e Mouro/Desenganai-vos: a Pátria/Já não é vosso tesouro”. De brinde, chamou-nos “monstros”.
Dos hinos que conheço, as excepções ao estilo ressabiado são, se calhar naturalmente, as que escapam ao embaraço. Gosto do hino israelita, curtinho e devotado à “terra” e à “esperança”, a Hatikva do título. Gosto do hino canadiano, O Canada, repleto de paisagens e que infelizmente partilha o estatuto oficial com o “God Save the…”. E gosto do hino americano, música e empolada letra, que por azar saiu longo e, nos versos finais de cada estrofe, impossível de cantar sem guinchos. O melhor hino não é um hino, a não ser informal: God Bless America, do grande Irving Berlin, mostra a diferença entre um criador de génio e uns amadores esforçados. É uma canção sucinta, clara, intemporal, perfeitinha. Tudo o que A Portuguesa não é.
Por mim, repito, mudávamos de cantilena. Porém, há que conter entusiasmos e evitar encomendar uma nova ao sr. d’Santiago. Espreitei a veia lírica do homem e apareceu-me o seguinte: “Querias uma utopia onde podias ser poesia/Mas nós estamos preocupados com as tuas estrias e celulite”; “Em todas as culturas/Quem ainda sofre bué/São as pessoas mais escuras”; “Meu povo vem da lama como Dalai/E fez todo o meu drama virar minha light/Mundo é minha Alfama, tou no meu bairro” e por aqui fora até ao suplício. Para isto, prefiro manter canhões e as armas.
Contas feitas, dado o excesso de d’Santiagos e a falta de um Irving Berlin, podíamos jogar pelo seguro e inspirarmo-nos na Espanha. Mau vento e péssimo casamento, mas um hino impecável. Pelo menos a letra.