A propósito do Dia da Mulher, a Penguin portuguesa, pelo menos a Penguin portuguesa, resolveu, cito, “desafiar convenções”. Vai daí, imprimiu uma série de livros em que os autores aparecem identificados na capa com o nome da mãe e não, como é habitual, com o do pai. Shakespeare passou a William Arden, Wilde a Oscar Elgee, Kafka a Franz Lowy, Austen a Jane Leigh e Pessoa a Fernando Nogueira, etc. E tudo isto #EmNomeDaMulher, “hashtag” que a editora pediu ao povo para usar nas redes sociais, junto com a adopção do apelido materno e a consciência de que é preciso “mudar mentalidades”.

Não conheço a repercussão do apelo. Mas faço uma ideia das mentalidades que mudou. Não me custa imaginar o típico agressor que entra em casa, com sangue no álcool e cachecol do clube ao pescoço, e se prepara para descarregar na cônjuge as frustrações habituais. Confrontado com o atraso no jantar, já a mão está levantada para o bofetão da praxe quando ocorre ao bruto a campanha da Penguin. De súbito, o bruto apercebe-se de que, apesar da Carta ao Pai, Kafka também tinha mãe. E comove-se. A mão desce, não num estalo e sim numa carícia, que de seguida se transforma num abraço longo e apertado. Obrigado, Penguin.

Além de mostrar que, não fora a tradição patronímica, Wilde seria confundido com uma marca de televisores e Pessoa com um antigo líder do PSD, a iniciativa desafiou de facto uma convenção: a de que cada ser humano é dotado de um cérebro. É que, pelos vistos, as senhoras e os cavalheiros da Penguin ignoram que os nomes das mães dos autores são os nomes dos pais delas. E que, assaz orgulhosos da proeza, se limitaram a rebaptizar cada poeta, dramaturgo ou romancista com o sobrenome do respectivo avô, ele próprio um provável representante do heteropatriarcado tóxico.

A incapacidade de raciocinar é naturalmente comum ao revisionismo literário, e não só, em curso. Por não conseguir distinguir ficção da realidade nem produzir um texto legível, essa gente vinga-se conforme pode dos que conseguem. É sempre mais cómodo trucidar As Aventuras de Huckleberry Finn (ai, a “n-word”!) do que conceber trabalho que lhe chegue à planta de um pé raso – mais cómodo e mais adequado a burgessos. Nuns casos, os burgessos alteram o nome dos escritores. Noutros, alteram as palavras que estes nos deixaram.

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Não há semana sem lápis azul. Na semana passada, a censura voltou-se para as obras de Roald Dahl, aparentemente repletas de vocábulos ofensivos para sujeitos com a ofensa fácil. Assim, “gordo” tornou-se “enorme” (sem se especificar em qual dos eixos cartesianos). “Feia” tornou-se “muito desagradável” (o que não parece grande eufemismo). E “preto” desapareceu sumariamente, ainda que na história em causa a cor descrevesse uns tractores. Nem quero pensar se Dahl, ou Roald Hesselberg, o nome da mãe, tivesse mesmo arriscado bulir com raças (descontados, é claro, o anti-semitismo e os anões, perdão, os pequenitos de Charlie e a Fábrica de Chocolate, em que alguém arranjou forma de ver uma paródia aos negros).

Quem se meteu na delicada temática racial foi Eça de Queirós, ou Zé Maria Eça, dado que somente o Queirós veio do pai. Ou essa (desculpem) é a opinião de Vanusa Vera-Cruz Lima, investigadora cabo-verdiana que dá aulas de português numa universidade americana. O problema da dra. Vanusa é com Os Maias, cujo narrador “reproduz a superioridade da raça branca sobre a raça negra, evidenciada através do discurso, frases, escolha de palavras, pensamentos das personagens de que a raça branca merecia ter o poder absoluto sobre a raça negra”. Para cúmulo, a dra. Vanusa detectou que João da Ega era favorável à escravatura, talvez por ter investigado atentamente a críptica frase em que Eça de Queirós diz: “Ega declarou muito decididamente que era pela escravatura”. Perante tais afrontas, a dra. Vanusa não exige proibições: apenas reclama que as futuras edições de Os Maias venham acompanhadas de comentários, estilo Código Civil, de modo a gerar “conversas corajosas sobre raça dentro do romance”.

Não vale a pena informar a dra. Vanusa de que a concentração de melanina é tema tão central a Os Maias quanto as rendas de bilros. E lembrar-lhe o papel dos africanos no tráfico de africanos. E explicar-lhe que quem teria legitimidade para pedir a revisão póstuma de Eça de Queirós eram os portugueses da metrópole, devida e lucidamente enxovalhados por ele (à cautela, nunca o fizemos). Porém, nenhum desses pontos é o ponto.

O ponto é que, se calhar, Eça de Queirós era realmente racista. E Roald Dahl odiava judeus. E Fernando Pessoa assinou com resmas de nomes sem recorrer ao da mãe. E, com jeito, alguém descobrirá um dia que Platão não era vegetariano, que Bach não era ateu, que Goya não era feminista, que Benjamin Franklin desconfiava de vacinas, que Rodin não ligava às alterações climáticas, que T.S. Eliot não apreciava a social-democracia, que Churchill não se entusiasmava com transsexuais e que, à semelhança do neto, o meu avô não separava o lixo.

E depois? Nada disso é extraordinário. Extraordinário é haver no Ocidente criaturas que, sem saber escrever, querem reescrever dois mil e quinhentos anos de História à luz do que aprenderam num vídeo do TikTok da passada terça-feira. Extraordinária é a soberba das criaturas, aliás proporcional à boçalidade. Para não envergonharem pai ou mãe, as criaturas deviam usar pseudónimo todos os dias.