Na semana passada, circulou um vídeo de um homem a tirar um bloqueador do automóvel. De acordo com a maioria dos comentários, seria um bloqueador da EMEL — Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa. Tantos aplausos que se ouviram mostram que a EMEL tem muitos anticorpos em Lisboa. Confesso que fui daqueles que aplaudiram vigorosamente o condutor.

https://www.youtube.com/watch?v=ccJgaXesCss

Que fique claro, nada tenho contra que se multem carros mal estacionados e que se combata seriamente esse flagelo. Mas tem de se ter noção das proporções. Bloquear um carro apenas porque está mal estacionado, ainda por cima sem incomodar grandemente o trânsito, é não ter, minimamente, essa noção. Não custa muito imaginar situações em que o dano de bloquear o carro seja enorme. Imagine-se, por exemplo, uma situação de emergência médica em que alguém deixou o carro estacionado fora de sítio e que, chegando ao carro para ir rapidamente para o hospital, o descobre imobilizado. É fácil imaginar outras situações verosímeis em que o dano de ter o carro retido é demasiado grande para esta actuação ser admissível. Este poder para lixar a vida às pessoas não deve ser atribuído à funcionária da EMEL que por ali passou.

Se alguém me assaltar a casa e eu enfrentar o ladrão e, por exemplo, lhe partir o nariz com um pontapé, muito provavelmente serei condenado por uso de força excessiva. São vários os casos de donos de lojas que têm problemas com a justiça por defrontarem os bandidos que lhes minam o negócio. Bem ou mal, não discuto, no Direito português vigora o princípio da proporcionalidade: não se pode provocar danos maiores do que o bem jurídico que está a ser protegido. Infelizmente, como se vê pela actuação da EMEL, o Estado português não respeita este princípio. E, também infelizmente, a actuação da EMEL é apenas um de milhares de exemplos que podem ser dados.

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Um destes dias, uma amiga minha viu a sua conta bancária penhorada pela Autoridade Tributária (AT). Depois de se informar, ficou a saber que a penhora se devia a uns pagamentos que a Universidade da Madeira alega ter-lhe feito indevidamente. E, como na conta não tinha dinheiro suficiente para saldar a dívida, ainda notificaram uma sua inquilina para que pagasse a renda à Autoridade Tributária em vez de a pagar à senhoria. Note-se que não está minimamente em causa o direito da Universidade exigir de volta o dinheiro que acha que pagou indevidamente. A minha amiga discorda e, portanto, deu entrada com um processo em tribunal, alegando que nada tem de devolver. Uma das partes terá razão e o tribunal decidirá qual delas. O processo deu entrada em 2012 e, até hoje, ainda nem decisão de primeira instância há.

Veja-se o absurdo da situação. O mesmo Estado que em 5 anos não conseguiu sentenciar que a Universidade da Madeira tem razão dá autorização à AT que faça bullying sobre uma pessoa até ela pagar uma quantidade de dinheiro que considera ser indevida e que fez a única coisa que deve fazer num Estado de Direito: recorrer aos tribunais para dirimir um conflito. O Estado permite que se use a Autoridade Tributária como o Cobrador do Fraque. Na verdade, é ainda pior, porque a AT tem um poder de coerção mais forte do que os tipos da máfia com um taco de beisebol.

E não são só as universidades públicas que podem recorrer a este serviço de extorsão. Muitas empresas o fazem. Já houve quem tivesse bens penhorados pela AT por causa de portagens por pagar. Esta foto que mostro foi tirada no Metro há 3 anos. É bem mais ameaçadora do que seria um anúncio de contratação de uma empresa privada de cobranças difíceis.

A ideia que tenho é que Portugal, a pouco e pouco, vai evoluindo de um Estado de Direito para um Estado Fiscal. Esta capacidade de coerção, em que, na prática, o ónus da prova é totalmente invertido, permite todo o tipo de abusos e excessos da AT.

Este Estado Fiscal em que vivemos é ainda mais perigoso dado o emaranhado labiríntico que é a fiscalidade portuguesa. Fico muitas vezes convencido de que para qualquer modesto empresário é virtualmente impossível cumprir todas as suas obrigações fiscais. O mesmo se passará com alguns contribuintes individuais. E como o Estado é omnipresente na nossa economia, muitas empresas, para sobreviveram, necessitam de fazer negócios com Estado, para o que precisam de certidões em como não têm dívidas nem à AT nem à Segurança Social. E mesmo depois de prestarem os serviços, para que possam receber os pagamentos, têm também de fazer prova de que não têm dívidas ao Estado. A necessidade dessas certidões, aliadas à morosidade dos tribunais, leva a que muitas empresas sejam obrigadas a pagar o que consideram que não devem pagar e depois reclamar em tribunal e esperar anos pelo reembolso de pagamentos indevidos.

O cidadão está tão à mercê do Estado Fiscal que urge dar-lhe algum poder. A forma ideal de o fazer seria através de uma colossal simplificação do sistema fiscal. Mas esperar isso do nosso sistema político é utópico. Até porque muitos deputados trabalham para grandes escritórios de advogados e leis complicadas são a garantia de que têm clientes. Mas, se calhar, a proposta de criação de um Provedor do Contribuinte terá pernas para andar. Nem que mais não seja por se criar mais uns cargos de nomeação e os políticos gostam sempre disso. Faltará decidir se pelo Governo, pela Assembleia ou pelo Presidente da República. Mas, apesar de ser uma ideia agradável ao poder político, não deixa de ser uma boa ideia. Um provedor, apoiado por uma equipa competente de juristas, fiscalistas e contabilistas, dedicado a mitigar os abusos do fisco, podendo fazer sugestões quer ao poder executivo quer legislativo, permitirá que em Portugal se respire melhor e, o que é particularmente importante, evitar grande parte dos abusos que são cometidos pelo Fisco.