O  vírus monkeypox, ou vírus da varíola dos macacos, deve o nome a ter sido identificado pela primeira vez num grupo de macacos da espécie Macaca fascicularis, recém-chegados a um laboratório de investigação dinamarquês em 1958. O vírus causava uma doença semelhante à varíola mas era diferente do vírus da varíola (smallpox virus) e de todos os outros vírus da mesma família. Era um vírus novo. Nos anos seguintes foi identificado por diversas vezes em macacos e outros pequenos mamíferos, sobretudo roedores, na região da África Ocidental (que inclui países como a Guiné-Bissau, a Nigéria ou a Costa do Marfim) e na bacia do rio Congo (que inclui Angola, o Ruanda ou a República Democrática do Congo, antigo Zaire).

O nome da doença (monkeypox ou varíola dos macacos) foi alterado há pouco tempo para Mpox, ou varíola M, pela Ooganização Mundial de Saúde (OMS), para não “ofender grupos culturais, sociais, nacionais, regionais, profissionais ou étnicos”. O vírus, contudo, continua a chamar-se monkeypox (ou MPXV).

Do macaco ao homem

Como é que um vírus que infecta macacos e esquilos começa de repente a infectar pessoas? Para os vírus, a passagem de um hospedeiro para outro, de um animal para outro animal ou para o ser humano, é um pouco como, para nós, mudar de país: é preciso aprender uma língua nova, trocar moeda – no caso do vírus, é preciso sofrer uma alteração no seu código genético (uma mutação) que lhe permita “falar” um novo dialecto – produzir proteínas capazes de interagir com as proteínas e as células de um novo hospedeiro, ligeiramente diferentes das do hospedeiro original. Isso não é difícil para um vírus. As mutações resultam geralmente de erros na replicação do código genético e é uma simples questão de tempo até que ocorra a mutação certa. Ora um vírus replica-se muito depressa, a intervalos de poucos dias entre cada duas gerações. Mesmo os vírus DNA, como o monkeypox, embora relativamente estáveis, sofrem mutações a um ritmo suficientemente rápido para conseguirem adaptar-se a sucessivos hospedeiros.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Um rapaz de nove anos foi o primeiro caso reconhecido de Mpox num ser humano, em setembro de 1970, no antigo Zaire (agora República Democrática do Congo). Outros casos se sucederam ao longo dos anos, sempre na região da África Ocidental e da bacia do rio Congo.

Depois, em 2003, um surto nos EUA veio mostrar a facilidade com que o vírus podia atravessar barreiras entre espécies e entre continentes. No dia 24 de maio de 2003, a divisão de saúde pública do Wisconsin foi informada de que uma menina de 3 anos estava hospitalizada com febre e lesões cutâneas, depois de ter sido mordida por um cão da pradaria (Cynomys ludovicianus), que é um roedor comercializado como animal de estimação na América do Norte. Dois dias depois foi registado o segundo caso: um comerciante de animais, residente noutra zona do estado e que também tinha sido mordido por um cão da pradaria. Dois meses mais tarde, no fim de julho, havia 72 casos confirmados ou suspeitos no Wisconsin, Illinois e Indiana. A investigação permitiu rastrear todos os casos até um distribuidor de animais exóticos do Illinois, que recebera pouco tempo antes um carregamento de animais infectados proveniente do Gana, na África Ocidental. Os cães da pradaria tinham feito provavelmente a ligação entre os animais provenientes de África e os seres humanos.

Out of Africa

Mas porque é que a OMS está preocupada agora?

Em primeiro lugar, porque o número de casos e a transmissão entre seres humanos estão a aumentar. Um artigo de 1988, sobre os resultados de um estudo levado a cabo no Zaire entre 1980 e 1984 (os primeiros cinco anos após terminar a vacinação da varíola), concluiu que a vacina da varíola dava 85% de protecção contra o MPXV (isto é, 85 de cada 100 casos de exposição ao vírus não eram infectados). Isto acontecia porque os vírus do género Orthopoxvirus, como o monkeypox, o smallpox ou o cowpox, são todos suficientemente parecidos para provocarem no hospedeiro fenómenos de imunidade cruzada – isto é, a imunidade contra um deles induz imunidade contra os outros. Foi essa a base da vacina da varíola que Edward Jenner desenvolveu em 1798, a partir de pessoas contaminadas com a varíola das vacas (vaccinia em latim).

O artigo concluía que, embora este fosse “consideravelmente menos transmissível” do que o vírus da varíola, a duração e a dimensão das epidemias tenderiam a aumentar à medida que a protecção da vacina da varíola diminuísse na população. De facto, depois do  surto na América do Norte em 2003, que foi o primeiro surto fora do continente africano, outros casos começaram a surgir na Europa e na América do Norte, geralmente em pessoas que tinham viajado para zonas endémicas. Em maio de 2022 havia mais de seis mil casos em sessenta países e, em novembro de 2022, mais de 50 mil casos em todo o mundo.

Em segundo lugar, porque esta variante do vírus é aparentemente mais agressiva, transmitindo-se mais facilmente e causando mais mortes. O agente isolado em 2022 era a variante do vírus conhecida como clado 2b, endémica na África Ocidental. No surto de 2024, o agente é a variante conhecida como clado 1b. O clado 1 é conhecido há décadas e é endémico nas regiões de floresta da bacia do rio Congo. O clado 1b surgiu agora na mesma área mas parece ser mais facilmente transmissível entre seres humanos. Só na RD do Congo foram reportados este ano 18 mil casos e pelo menos 600 mortes. Embora ainda circunscrita a África, a nova variante da doença está a alastrar mais do que em surtos anteriores, atingindo, além do Congo, o Burundi, Uganda, Ruanda e Quénia. E os primeiros casos fora do continente africano foram reportados agora em agosto.

Que fazer?

O vírus transmite-se basicamente por contacto directo com as lesões cutâneas ou com secreções (sangue, saliva ou urina), ou ainda pela mordedura e através da manipulação ou ingestão da carne de animais contaminados. O contágio à distância, através de gotículas e aerossóis (tão temido na Covid) não parece ser importante, mas só estudos experimentais poderão esclarecer este ponto. Por outro lado, durante o surto de 2022 verificou-se um desvio significativo no padrão demográfico: 95% dos casos reportados eram homens jovens, com menos de 40 anos. A OMS considerou a Mpox uma doença sexualmente transmissível (DST).

A OMS continua a recomendar que se limitem viagens e deslocações, com o objectivo de impedir ou reduzir a propagação do vírus. Mas restringir viagens não serve de nada. Quarentenas e cordões sanitários não impediram a peste negra de entrar na Europa no século 14, ou a varíola de entrar em Boston, em 1721. Nos anos 1960, a Europa e as Américas, que já tinham praticamente erradicado a varíola, tentaram impedir a entrada de viajantes provenientes de regiões endémicas, como a Índia e a África, mas isso não impediu que os surtos se sucedessem. Enfim, como todos sabemos, não foram as quarentenas e os cordões sanitários que impediram a pandemia de Covid em 2020.

Toda a experiência passada sugere que a resposta passa necessariamente pela prevenção da doença na origem. Mais uma vez a varíola: foi o financiamento de uma estratégia global de vacinação pelos países do primeiro mundo que permitiu a sua erradicação no espaço de vinte anos, entre 1960 e 1980. Fornecer vacinas aos países atingidos não é um acto de caridade – é um investimento na segurança global. Mesmo se aceitarmos a afirmação do historiador grego Tucídides, de que o forte faz o que pode fazer e o fraco sofre o que tem de sofrer, acontece que os custos de uma campanha de vacinação em África são claramente inferiores aos custos de uma pandemia.

Foi por isso que a OMS declarou em agosto a Mpox uma emergência global de saúde, embora a doença ainda esteja aparentemente localizada (os dois doentes diagnosticados em agosto na Suécia e na Tailândia com a nova variante do vírus tinham acabado de regressar de regiões endémicas). É por isso que está a pedir que os países do Norte global financiem vacinas para os países do Sul.

Existem actualmente duas vacinas disponíveis para fabricação em massa: uma produzida pela Bavarian Nordic (uma empresa com sede na Dinamarca e estruturas de investigação e produção na Suíça, Alemanha e Califórnia), que já foi aprovada pela FDA nos Estados Unidos e pela EMA na União Europeia; e outra produzida pela KM Biologics (uma empresa japonesa).

As vacinas são seguras? Devem ser. São feitas com base nas mesmas estirpes virais que serviram para a produção das vacinas usadas nas campanhas de erradicação da varíola do século 20 (o que significa centenas de milhões de vacinas).

As vacinas resultam? Um estudo de 2022 feito nos EUA apontou para 80% de eficácia com 1 dose. Mas ainda é cedo para avaliar a sua eficácia real e perceber se as populações em África, que incluem grande número de crianças e doentes com depressão do sistema imunitário, terão uma resposta semelhante à das pessoas do estudo.

A OMS estima que serão necessárias 10 milhões de doses para conter o surto. Até agora, os EUA ofereceram 50 mil doses e a UE outras 175 mil. Alemanha e França, 500 mil doses e 100 mil doses, respectivamente. E o Japão ofereceu 3,5 milhões de doses. A própria fabricante da vacina europeia, a Bavaria Nordica, terá oferecido mais de 200 mil doses. Mas as vacinas ainda não chegaram aos países que esperam por elas. Porquê?

A ideia que corre é geralmente que os “países ricos” gostam de anunciar ajudas aos países do Sul global mas que a passagem à prática é mais difícil. E posições como a da ministra da saúde dos Países Baixos, que se declarou contra o envio das vacinas para África com o argumento de que “podemos precisar delas”, não ajudam. Desta vez, contudo, o Norte global está inocente. O problema é a burocracia da própria OMS, cujo processo de aprovação das vacinas se tem inexplicavelmente atrasado. A ausência de aprovação impede obviamente a entrega das vacinas pelos países dadores.

Entretanto, por cada mês que passa, mais gente fica infectada, maior é o território afectado e maior é a probabilidade de um surto fora de África.