A Typhoid Mary, de seu nome verdadeiro Mary Mallon, nasceu na Irlanda em 1869 e emigrou para a América aos 15 anos. A emigração irlandesa para os Estados Unidos durante o século XIX, sobretudo depois da Grande Fome de 1845-48, foi massiva: quando Mary chegou à América, um quarto da população de Nova Iorque, Boston e Chicago era irlandesa. O Mayor de Nova Iorque era irlandês.

O encontro de Mary Mallon com a história aconteceu em 1906. Embora tivesse começado a trabalhar como criada (ou “empregada doméstica”, como dizemos agora), um destino habitual para as mulheres migrantes, o talento para os tachos permitira-lhe subir na escala social e, aos 30 anos, já era cozinheira. No verão de 1906, Charles Henry Warren, um banqueiro de Nova Iorque, contratou-a como cozinheira da família durante as férias.

Seis habitantes da casa adoeceram com febre tifóide. Um engenheiro civil chamado George Soper, especialista em surtos de febre tifóide e contratado para investigar o caso, suspeitou da cozinheira. Uma investigação do seu passado profissional confirmou a suspeita: entre 1900 e 1906, nas sete casas em que Mary trabalhara como cozinheira, 22 pessoas tinham adoecido com febre tifóide.

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Mary Mallon foi detida pelos oficiais de saúde pública ao abrigo do artigo 1170 da Carta de Nova Iorque, que estabelecia que qualquer pessoa “com doença contagiosa” podia ser “removida” para “lugar adequado”. Os oficiais de saúde consideraram que Mary, enquanto provável portadora de febre tifóide, devia ser “removida”. Até 1910 foi mantida em isolamento no Riverside Hospital , uma instalação destinada na época à quarentena de doenças infecciosas, numa ilha no meio do East River.

Em 1910 um juiz libertou-a, sob compromisso de não voltar a exercer a profissão de cozinheira. Mary arranjou emprego numa lavandaria. Mas, em 1915, um surto de febre tifóide atingiu o Sloane Maternity Hospital, em Manhattan: 25 pessoas adoeceram e 2 morreram. A investigação apontou como origem do surto Mrs. Brown, uma cozinheira contratada recentemente. Mrs. Brown, descobriu-se a seguir, era Mary Mallon.

No primeiro julgamento, Mary tivera a benevolência do juiz e da opinião pública. Em 1915 isso não aconteceu. Claro que Mary, uma mulher sem instrução, que na primeira detenção tentara defender-se com uma forquilha dos oficiais de Saúde, nada deve ter compreendido do conceito de “portadora”, nem das teorias científicas sobre contágio (no primeiro internamento confessara que raramente lavava as mãos quando cozinhava), e a sua desobediência ao tribunal deveu-se provavelmente a simples razões económicas (cozinheira era um trabalho bem pago e com um estatuto elevado; proibi-la de exercer a profissão era uma despromoção social). Mas o que a opinião pública e o tribunal viram na reincidência de Mary foi dolo e mau carácter.

Mary foi novamente enclausurada no Riverside Hospital, desta vez sem perspectiva de libertação. Aí viveu os últimos 23 anos da sua vida. Parece que ajudava no trabalho do hospital, tendo-lhe sido dado o título de “nurse” em 1922. Morreu em 1938.

A historiografia dos nossos dias gosta de apresentar Mary Mallon como um exemplo de discriminação: o problema da cozinheira irlandesa era ser migrante, mulher e pobre. É provável que isso a não tenha ajudado. Mas, ainda que esses factores a tenham “posto a jeito” das autoridades (ao contrário do que aconteceu com outros portadores identificados à época, que os houve), não devemos perder de vista que a lógica que a condenou e encarcerou foi a lógica da Saúde Pública. Quando Mary é libertada sob condições em 1910, as autoridades sanitárias de Nova Iorque estão contra e declaram-no ao tribunal. As mesmas autoridades suportam a decisão judicial em 1915.

Para os dilemas que nós próprios enfrentamos actualmente, pode ser mais útil pensar o caso apartir das contradições entre a lógica da saúde pública e as liberdades individuais.

A moderna Saúde Pública nasceu com Johann Peter Frank, um médico de origem germânica, admirador de Rousseau e amigo dos vários déspotas “esclarecidos” que, à época, governavam a Europa. Trabalhou sobretudo para os governos da Prússia, Áustria e Rússia.

Frank era um paternalista. Uma vez definidas as “boas práticas” de higiene, havia que legislar para obrigar indivíduos e populações a segui-las. Tratava-se de promover um bem maior, o bem-estar da comunidade, ainda que à custa dos apetites e dos vícios individuais. A sua obra principal, em seis volumes e três suplementos, intitulava-se “O Completo Sistema de uma Polícia Médica” e nele abordava todos os aspectos da vida humana, regulando-os do ventre materno ao túmulo. Frank tinha opiniões e normas sobre o casamento e os filhos ilegítimos, sobre a adulteração dos alimentos pelos comerciantes, sobre a roupa e a maquilhagem, sobre as janelas das casas.

Foi esta pulsão reguladora que ditou o destino de Mary Mallon. É esta pulsão reguladora que inunda hoje as nossas vidas, nas taxas que se quer lançar sobre os hamburgeres, na perseguição movida aos gordos, na sanha normativa da ASAE, na proibição dos tachos de barro – qualquer um pode fazer uma lista imensa.

A importância decisiva da Saúde Pública para o bem estar das populações nos últimos dois séculos não pode ser negada. Mas não deve distrair-nos do seu potencial totalitário. Porque essa é a sua lógica intrínseca e porque, de facto, responde a uma pulsão das pessoas e das sociedades.

A imagem de Mary Mallon como Typhoid Mary sobreviveu na memória colectiva e popular: daria mais tarde nome a uma vilã da Marvel, inimiga de Daredevil.

Médico patologista