É imperioso escrever sobre o nojo em que mergulhou o futebol português. Confesso que é um tema sobre o qual tenho pruridos em falar. Mas não há reservas que resistam ao estado de putrefação que anda há anos a ser disfarçado com uns bons resultados europeus dos clubes portugueses, o título inédito da seleção, a genialidade de Ronaldo e os êxitos de mais meia dúzia de jogadores e treinadores nacionais fora de portas. O cheiro tornou-se de tal forma nauseabundo que vou pôr os pudores de lado.
Faço um curto interlúdio para explicar as minhas reservas. Depois de ter trabalhado diretamente com a área do futebol durante muitos anos (algo de que muito me orgulho), e mesmo tendo mantido sempre a responsabilidade profissional pela área do desporto até agora, acho que já não tenho os conhecimentos que tive sobre o setor para falar dele como especialista. Além disso, tendo assumidamente uma preferência clubística, e ainda que isso obviamente jamais tenha interferido na forma como trato ou mande tratar todas as notícias de todos os clubes, não gosto, confesso, de ficar sujeita a comentários idiotas.
Mas vamos lá ao nojo, que é isso que interessa. Começo já por lembrar que ele não se instalou, infelizmente, só agora. Aliás, o problema talvez tenha sido esse. Deixar a coisa apodrecer. Não tenho memória curta e infelizmente não vou para nova. Lembro-me do caso Calabote, da fruta do Apito Dourado e de tantos outros até chegarmos aos mails e às (gravíssimas) toupeiras judiciais, às suspeitas de jogos comprados e a todos os processos que estão a ser investigados. Não percebi há décadas como Pinto da Costa e os dirigentes do FC Porto escaparam a uma condenação. Mas também não percebo agora como pode Luís Filipe Vieira manter o seu administrador suspeito de usar uma rede de informadores no interior da Justiça. Nem entendo como de repente há tantas investigações ao Benfica, numa espiral sucessiva e tão intricada que já me parece ir além da simples teoria da cabala com que o clube se defende.
Também estou ainda em choque com o estado de loucura instalado no Sporting. Mas espero que no meio da confusão e dos crimes de meia centena de energúmenos contra jogadores e treinador, ninguém se tenha esquecido das suspeitas da tentativa de suborno a jogadores no hóquei, andebol e futebol, que fez cair o team manager do clube, constituído arguido. Este não foi apenas mais um sinal desta podridão de que falo. Foi um dado muito concreto de que algo vai mal, muito mal. E espero que a Justiça continue mesmo até ao fim e faça uma limpeza geral a todos os clubes que tiver que fazer.
Não será fácil. Um magistrado dizia-me um destes dias que investigar um ex-primeiro-ministro como José Sócrates é mil vez mais fácil que ‘mexer’ no futebol em geral, ou num clube em particular como o Benfica. De um lado, estão sempre milhares de portugueses contra a corrupção. Do outro milhões de adeptos ferrenhos indignados. Mesmo entre os investigadores.
Não sou uma puritana do futebol. Gosto de ver o meu clube ganhar. Sei como se passam muitas coisas. Mas irrita-me, irrita-me solenemente, ver uma equipa que está a jogar bem perder por erros que muitas vezes me parecem demasiado suspeitos e perceber apenas anos depois que as minhas suspeições e de muitos adeptos afinal tinham razão de ser. E a primeira divisão é apenas uma pontinha muito pequenina do icebergue. O maior problema do futebol português está nas divisões inferiores. É lá que se jogam hoje em dia as grandes trapaças desportivas. É lá que está o grande monstro escondido. O mundo por investigar das apostas desportivas on-line vai um dia revelar esse enorme buraco negro da corrupção desportiva.
Se ela já chegou à primeira divisão, como se suspeita com os recentes casos do Benfica (Mala Ciao) e do Sporting (Cashball). Se já há casos que chegaram a julgamento na segunda e terceira divisão (Jogo Duplo). Imaginem o que está por descobrir. Aliás, pensar na falta de legislação sobre o jogo on-line, que continua por ser regulado de forma global pelo Governo português há mais de dois anos por razões insondáveis, torna o polémico negócio da Santa Casa com o Montepio uma mera brincadeira de crianças.
É preciso olhar para o futebol como um negócio. Um grande negócio. Envolve milhões, das transferências de jogadores e treinadores aos direitos desportivos e televisivos. Mas também nos resultados (e suas variantes) das apostas em todo o mundo. Por isso mesmo tem de ser regulado e controlado. Não é. Ou não querem que seja. Daí ter chegado ao estado de nojo em que está. Agora a Justiça parece estar finalmente a mexer-se. Ainda bem. Aplaudo de pé. Ainda que mantenha o cachecol a tapar-me a boca e o nariz.
No meio de tanta lixeira, valha-nos a seleção. A Federação conseguiu em poucos anos passar de uma associação amadora, como se vê pelo nível da discussão pública que Carlos Queiroz manteve com Quaresma, a uma empresa profissional de sucesso comprovado. Espero que esse êxito ajude a seleção a continuar no Mundial da Rússia este sábado. É merecido. E uma brisa de ar fresco no futebol conspurcado que temos.
Só mais duas ou três coisas
- O Ministério Público chamou-lhe Tutti Frutti. Porque a investigação incide sobre o financiamento partidário ilícito ilegal em vários partidos, ou seja em várias cores políticas. Mas há uns mais suspeitos que outros. O PS está na mira dos investigadores. Mas é sobretudo sobre o PSD que tudo gira. Foi curioso por isso ver José Silvano, o secretário-geral do partido, correr apressado a dizer que este processo nada tem a ver com a atual direcção. Afinal Rui Rio, que conseguiu ganhar a Costa a corrida de restabelecer mais rapidamente as relações com esse exemplo de país não corrupto que é Angola, fez do banho de ética a sua bandeira eleitoral. Esqueceu-se foi que se uns têm Luis Newton e Carlos Eduardo Reis, ele e Silvano têm Salvador Malheiro e Elina Fraga.
- O Banco de Portugal e a Associação Portuguesa de Bancos estão contra a divulgação da lista dos grandes devedores à banca. Entre eles, claro, os da Caixa Geral de Depósitos. Dizem ambos que viola o sigilo bancário. É curioso que ninguém ache o mesmo sobre a lista dos grandes devedores ao Fisco, que todos os anos as Finanças decidem dar a conhecer. Quer em Portugal, quer em Espanha, como aconteceu esta semana.