Confinados sine die por causa da pandemia, proponho que joguemos um jogo de adivinhas sobre finados ad aeternun por causa da ideologia. O jogo é simples, o leitor apenas tem de dizer se estas mensagens são de ódio ou de amor:

  1. O carro do Francisco merece explodir! Mereces um tiro, Ângelo! Vou-te esfaquear! Vou arrancar-te a pele às tiras. Numa rua esquecida devíamos matar o José. E devia ser aplicada pena de morte para aquelas miúdas patéticas, filhas do Filipe.
  2. No 25 de Abril devia ter havido sangue, devia ter havido mortos.
  3. É necessário matar o homem branco.

Se o estimado leitor, ingénuo, respondeu ódio, acabou de perder. Isto porque, antes de tomar posição, deve perguntar sempre primeiro quem é que proferiu as sentenças. É porque hoje em dia, é quem o diz, e não o que diz, que importa para a classificação de bondade. Reformulo: não é sequer tanto quem diz, mas o lugar canhestro de onde a sentença é proferida.

Mas vamos ver quem as proferiu. As primeiras foi o “herói” da liberdade de expressão Pablo Hasél, o rapper que incendiou a Catalunha nos últimos dias. Nas suas mensagens, sempre de “amor à libertação” e sempre “contra a opressão”, referia-se a Patxi López, a Àngel Ros, a José Maria Aznar e às infantas, filhas de Filipe de Espanha. Mas isso não interessa nada; bom, a menos que no lugar de algum destes nomes esteja o seu e o dos seus próximos, mas nesse caso teria sido prudente perguntar primeiro o que é que é aceitável para esses “democratas”. O que verdadeiramente interessa é que Pablo Hasél é um “herói” da esquerda, ou não tivesse o nosso Bloco de Esquerda vindo prontamente expressar a sua solidariedade para com ele. Mais: há até quem, com ar sério, insista que o pobre homem é vítima do Estado espanhol apenas por ter insultado a coroa; omitindo convenientemente o seu vasto histórico de apelos ao terrorismo e incitamento ao homicídio.

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A partir daqui a coisa perde importância, porque os personagens também são mais irrelevantes. Digo irrelevantes, não digo menos onerosos, porque o estimado leitor continua a pagar-lhes o salário.

As segundas declarações são de Ascenso Simões, deputado do Partido Socialista e uma espécie de Robespierre luso, mas de chinelos. Graças a Deus este ainda não se encontrou com a guilhotina; já que seria uma perda considerável para o espectáculo de variedades nacional.

As terceiras declarações são do “activista anti-racista” Mamadou Ba. Vou poupar a adjectivação. Um país que tem um figurão como Mamadou Ba a marcar a agenda do espaço público, merece mais adjectivos que ele.

E agora o esclarecimento novolinguístico. É claro que estas mensagens não são literais – a extrema-esquerda nestas coisas nunca é literal -, mas simbólicas. E é verdade. Até porque, desde logo, são os seus autores e os seus apoiantes que o dizem, e se o dizem tem de ser verdade. Mais: quando muito, isso serve para mostrarem que, havendo alguma ínfima marginalidade de ódio, esse ódio é uma espécie de ódiozinho do bem, e sempre justificado em nome da “luta pela justiça”.

Já quando eu digo que é verdade, é por outra razão: é porque estas mensagens são mesmo simbólicas, simbolizam de facto a violência, a intolerância, a incompatibilidade visceral com as democracias liberais e com os direitos humanos da esquerda populista, que há muitos anos os exibe sem pudor e com o beneplácito da opinião publicada.

Ora, num tempo em que tantos inimigos da liberdade, da democracia e dos direitos humanos surgem de tantos lados, é inevitável voltar a Popper; e, surpresa, surpresa, também a Le Bon. Não, no caso de Popper, à usual interpretação do paradoxo da tolerância, na sua fórmula mais simples e tantas vezes treslida, de barrarmos as ideias que ameaçam a liberdade. Mas na sua leitura mais subtil, quando nos diz que “enquanto pudermos contrapor [às filosofias intolerantes] a argumentação racional e mantê-las controladas pela opinião pública, a supressão seria por certo pouquíssimo sábia.” Mas sobretudo quando acrescenta que devemos considerar o direito – pela força da Justiça – de suprimi-las, se, ao contrário de se nos oporem no terreno dos argumentos racionais, começam a instigar os seus adeptos a responder com “punhos e pistolas”. Nesse caso, em nome da tolerância, temos o direito de não tolerar os intolerantes, uma vez que deve ser considerada criminosa qualquer incitação à intolerância e à perseguição, sobretudo nos casos da incitação ao homicídio.

E eis-nos voltados ao simbólico, panaceia dos violentos para desdramatizar a violência que apregoam. E aqui relembro Le Bon. Não sem intenção e, portanto, não inocentemente. É porque é preciso ler Le Bon para perceber o fascismo. E é preciso perceber o fascismo para perceber a retórica dos populistas. Mesmo os de extrema-esquerda. Quando invocam o simbolismo, para, a posteriori, legitimarem o que antes, no meio da paixão, lançaram às massas é bom não esquecer que “é bastante fácil fazer surgir sentimentos na alma das multidões, mas é dificílimo refreá-los. Desenvolvendo-se, convertem-se em forças que não é possível dominar.” Na dúvida é dar uma saltada a Espanha por estes dias.

Quando os assuntos da República passarem a ser digladiados, não no Parlamento, mas nas ruas; quando o tom da compita política for marcado, não pela razão dos representantes, mas pelas paixões dos representados; quando os instrumentos do combate político forem, não os argumentos do debate, mas os punhais do combate; nessa altura é bom não esquecermos quem foram os incendiários.