De vez em quando é assim. Descobrimos que este país tem uma traseiras. Que há uns cantos escuros onde se acumula o lixo que não queremos ver. Que há uma realidade com que vivemos paredes meias mas que ignoramos ou fazemos por ignorar.

A mãe que colocou o filho naquele contentor do lixo não vivia num buraco – vivia paredes meias com alguns bares da moda e restaurantes de luxo. Ela e outros sem-abrigo. As tendas ainda lá estão. E estarão.

Aquela mãe cometeu um acto monstruoso? Sem dúvida. Mas eu nem quero imaginar o que ela passou nos anos – cinco anos – que passaram desde que aterrou em Portugal e acabou ali, como um pedaço de lixo descartável. Não consigo também imaginar como conseguiu esconder a gravidez, como viveu com ela, como sobreviveu com ela naquele ambiente hostil. Mas sobretudo aquilo em que nem sequer quero pensar é nas condições em que teve a criança, sozinha, ao frio, sem higiene, com medo, com sangue, com dor.

O que ela fez nos minutos – horas? – que se seguiram é a história que está por contar, e aquela que um dia um juiz terá de julgar. Só que entretanto já sabemos o que aconteceu.

Em Portugal somos muito rápidos a atirar a primeira pedra. Se algum dia nos leram a Parábola da Mulher Adúltera do Evangelho de João, então já a esquecemos: somos gente sem pecados, sempre prontos apontar um dedo acusador ou a condenar quem está na mó de baixo. Quando a mãe ficou em prisão preventiva, quem se interrogou sobre a dureza dessa medida? Na primeira hora só me lembro de uma pessoa: Dulce Rocha, do Instituto de Apoio à Criança. Quando foi levada para Cadeia de Tires, quantos correram o risco de dar sinais de compreensão, compaixão, porventura solidariedade? O Presidente da República, que disse algumas palavras sensatas, e os advogados que interpuseram um habeas corpus.

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Mas eu até diria que nestes dias em que as tais traseiras do país ficam de repente escancaradas à nossa frente – e fazem cair a máscara bem-afivelada da Lisboa toda perfeita da Web Summit – as reacções mais emotivas até se entendem. Se a multidão já agarrou nas pedras, quem sou eu para também não agarrar numa?

Mais complicado é termos consciência de que aquele país assim destapado nos é indiferente 364 dos 365 dias do ano. Ou seja, todos os outros.

Para ser mais preciso, não nos é indiferente – achamos é que não temos nada a ver com ele. Há pobreza? O Estado que se ocupe. Gente a passar fome? Então não há um Banco Alimentar? Tendas de sem-abrigo montadas ao lado do Lux-Frágil? Os fiscais da câmara que tratem delas.

Andamos muito preocupados com o mundo e até temos várias “causas” que nos ocupam os espíritos. A mais recente de todas é esta de que o nosso Planeta está para acabar, de que há uma emergência climática. Já subscrevemos algumas petições, sabemos tudo sobre a Greta, trocámos as lâmpadas lá de casa, o ano passado fomos a uma daquelas acções plantar umas árvores e até já comemos menos carne (vá lá, um bocadinho menos). Se nos vierem perguntar que assunto nos preocupa mais, somos mesmo capazes de dizer que é o ambiente.

A nossa consciência está tranquila, não temos culpa de todo o mal que por aí andam a fazer. E, se for preciso, também atiraremos uma pedra quem quiser explorar o lítio, mesmo sabendo nós que ele faz falta para os carros eléctricos. Tal como iremos ao cordão humano contra uma barragem ou mais de campo de ventoinhas, porque queremos preservar a paisagem.

É o que eu digo: estamos sempre prontos a atirar a primeira pedra.

Mas será que estamos prontos mudar comportamentos, a começar pelos nossos?

Vamos ser honestos: não estamos. É mais confortável ter um discurso politicamente correcto contra a “caridadezinha” do que ir à noite distribuir alimento aos sem-abrigo. Para além disso vamos ter muita gente a fazer coro connosco: “pagámos os nossos impostos, o Estado que trate”.

O Estado, o Governo, têm sempre culpa de tudo. Somos hoje comparativamente muito mais ricos do que éramos há 50 anos? Somos: de 1960 para cá o PIB per capita multiplicou-se por cinco. Mas o número de filhos que temos caiu para menos de metade. Porquê? Lendo os jornais parece que é porque o Estado – sempre o Estado – não arranja casas suficientes para os casais jovens. Como se essas casas existissem há 50 anos.

Mas claro, não temos culpa. Nunca temos culpa, como notava certeiramente Alexandre O’Neill num livro em que descrevia os portugueses. Nós até já arranjámos a melhor forma de não ter mesmo culpa nenhuma, que é poder dizer “eu até não votei neles”, o que fazemos ficando em casa no dia das eleições.

É por isso que estes casos vêm e vão tão facilmente, durando pouco mais do que alguns ciclos noticiosos. Atiram-se as pedras e passa-se ao caso seguinte. E mesmo parecendo à superfície que são os políticos que sofrem, por serem sempre “os culpados”, na verdade este toca e foge também permite que escapem a um verdadeiro escrutínio e responsabilização.

Um exemplo simples, retirado do debate desta semana com o primeiro-ministro. A certa altura, confrontado com a quantidade de escolas fechadas ou com problemas por falta de auxiliares, António Costa atirou com um número: nos últimos quatro anos passou-se de um auxiliar para cada 26 alunos para um auxiliar para cada 22,6 alunos. Uau!, que progresso. Ninguém ripostou. Ninguém notou o logro: fazendo as contas às horas úteis, a passagem das 40 para as 35 horas significa que para manter o mesmo serviço era necessário passar de um rácio de 26 alunos para um de 22,75. Ou seja, estamos como estávamos há quatro anos, provavelmente pior porque é mais difícil fazer horários de 35 horas do que horários de 40 horas. Mas a discussão seguir em frente. Toca e foge, já fugiu.

Eu sei que nestes tempos de esfuziante optimismo (ou ainda será irritante optimismo?) estas minhas palavras a pedir mais compaixão e mais responsabilização e menos sentenças de bancada e moralismos de poltrona não dão com o espírito do tempo.

Mas daqui a seis meses, quando olharmos para trás e tratarmos de saber o que aconteceu ao bebé, onde entretanto estará mãe e procurarmos ver se as tendas ainda continuam no mesmo local ou foram para outro canto mais discreto, talvez fiquemos a saber mais sobre o nosso país do que em todos os debates quinzenais que vamos ter até lá. Vai uma aposta?