As formas como certos detentores de privilégios podem organizar narrativas para culpabilizar os elos mais fracos de dada sociedade é tema que a literatura e as artes, ao longo dos séculos têm prestado atenção. Obras trágicas e satíricas, romances, novelas, óperas, peças de teatro, esculturas, pinturas dão disso conta. Lembro a Ópera do Malandro (1978), de Chico Buarque, uma crítica mordaz à sociedade brasileira, inspirada em Bertolt Brecht e Kurt Weil (A Ópera dos Três Vinténs, de 1928). Chico Buarque, numa dos textos que escreveu e musicou – a Canção do Malandro – lembra como é expediente de poderosos responsabilizar os mais fracos por situações inconvenientes.

E o que tem este introito a ver com o Pinhal de Leiria?

No dia 15 de Outubro de 2017, arderam 86% da Mata Nacional de Leiria, ou seja, 9500 hectares. Segundo o jornal “Expresso”, “(…) até julho tinham sido cortados 3800 hectares de pinheiros, cuja venda rendeu (ao Estado) €13,6 milhões, estando ainda por retirar as árvores queimadas de 1800 hectares” e serão precisos 150 anos para o Pinhal de Leiria voltar a ser o que era.

O fogo terá tido origem em dois reacendimentos de incêndios geograficamente próximos. Um destes, segundo a Polícia Judiciária, terá tido origem dolosa, sem que se identificasse o autor, e outro, numa queimada, da responsabilidade de uma sexagenária de 69 anos. Esta é a única arguida no processo de crime por incêndio florestal, movido pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Leiria. O julgamento iniciou-se no passado dia 17 de Outubro.

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O site do Turismo do Centro de Portugal (que precisa de ser atualizado) diz que a “Mata Nacional de Leiria ou Pinhal de Leiria é uma das maiores florestas portuguesas, mandada plantar por D. Afonso III e, cujo desenvolvimento e ordenamento territorial, deve-se a D. Dinis.” Infelizmente, já não é. O Pinhal de Leiria foi uma das maiores florestas portuguesas.

Sim. Uma mancha florestal com 700 anos ardeu, num ápice, no ano de 2017. E a única pessoa visada na investigação penal é uma sexagenária de 69 anos que tinha feito uma queimada ali perto. Chico Buarque.

Pergunta-se: porque não se investigou a responsabilidade do Estado, proprietário da Mata Nacional de Leiria, por esta tragédia? E se se investigou, quais as conclusões? Algumas perguntas merecem resposta, para esclarecimento de uma matéria que é de interesse público:

  • O Estado cumpriu os seus deveres de limpeza da Mata?
  • Qual a situação de risco de ignição da mesma à data do incêndio e porquê?
  • Que planos de salvaguarda da Mata existiam e qual o nível da sua execução? E se não existiam, porque razão não existiam?
  • Qual o grau de monitorização da Mata? Havia circuito de videovigilância? Guardas florestais? Postos de vigia? Se sim, como funcionavam? Se não, porquê?
  • Quais os sistemas montados para acorrer a situações de incêndio? Uma mancha florestal como a Mata/Pinhal de Leiria, com uma superfície de 11 000 hectares, tinha um corpo de bombeiros ou/e de sistemas antifogo? Se sim, porque não funcionaram? Se não, porquê
  • Existiam planos de contingência para situações de incêndio? Como foram aplicados? Porque não funcionaram? Se não existiam, porquê?

A PGR fez estas perguntas? Se fez, quais são as respostas? Se não fez, porque não as fez?

Sabemos que, infelizmente, a falta de sistemas de proteção bem planeados e a postos para enfrentar situações de emergência, como esta, abundam em Portugal, e, que a responsabilidade por isso se distribui não só pelo Governo em funções em 2017 – o Governo do Partido Socialista – mas por governos anteriores, com maiores ou menores ações neste domínio.

A verdade é que esta linha de raciocínio não serve para desculpabilizar a falta de coordenação e a gravidade dos resultados em dado momento, em dada situação concreta.

O Estado é uma pessoa coletiva com uma duração indefinida, mas, o Governo em funções é o órgão soberano com responsabilidades executivas das tarefas estatais. E se uma tragédia ocorre em dado momento, é aos representantes estatais desse momento que se tem de pedir responsabilidades. Eles são, para todos os efeitos, o rosto do Estado, a sua materialização em agentes. Por isso, independentemente do grau de responsabilidade subjetiva, não se pode ignorar que, objetivamente, era responsabilidade do Governo de 2017 promover as melhores condições para proteger as nossas florestas e, entre estas, aquelas que são propriedade do Estado. Essa proteção estava garantida?

É assim que a acusação da sexagenária parece um episódio de uma ópera bufa.
Não sei avaliar o grau de dolo da sexagenária que estava a fazer uma queimada ali perto e o próprio Ministério Público diz reconhecer que não consegue estabelecer um nexo de causalidade entre esta ação (mesmo sendo dolosa) e o incêndio do Pinhal de Leiria.

Mas estamos sem respostas às dúvidas legítimas sobre a prontidão do Estado para responder a este tipo de riscos. E sobre as responsabilidades concretas neste caso em particular.

É que o dano a que corresponde a perda desta mancha florestal é grande. Dano, nomeadamente, para a flora e fauna, para a fixação dos terrenos dunares, para o património histórico e paisagístico, para um modelo económico e social ancorado numa economia verde, para o turismo. E a culpa morre na sexagenária? Chico Buarque.

Esclareço, aqui, a razão do título deste texto: não sabendo se a senhora é ou não casada, fico com dúvidas sobre o estado civil da culpa: é uma culpa casada ou será que vai morrer solteira?