O que aconteceu em Portugal nos últimos quase três anos é a todos os títulos extraordinário. Uma reviravolta de 180 graus, desmentindo todas as previsões baseadas em tendências e tornando a realidade muito mais interessante do que qualquer ficção. O que se passou recomenda ainda mais prudência nas antecipações que se queiram fazer do futuro. Ou, como se aconselha a quem faz previsões económicas, se é preciso fazê-las, que se façam muitas, já que alguma acertará.

Há dois aspectos especialmente interessantes: um, já bastante debatido, é o que diz respeito aos resultados económicos e financeiros. O outro é a alteração significativa das avaliações que partidos como o PCP e o BE fazem de acontecimentos que teriam provocado criticas sem dó nem piedade no passado. Tudo isto se deve obviamente ao perfil do primeiro-ministro António Costa, à convergência de interesses com o PCP e o BE e, mais importante ainda, a uma elite política e económica ameaçada na era de Pedro Passos Coelho.

Podemos dizer que a trajectória económica é menos boa do que o desejável, ou mesmo do que seria possível com outra política económica – nunca o saberemos, especialmente porque o enquadramento político e social seria muito diferente se o PSD e o CDS tivessem sido Governo. Um dos objectivos indiscutivelmente atingido, com a aliança do PS ao PCP e ao BE, foi a estabilidade, não apenas na governação – obtida já com Aníbal Cavaco Silva e José Sócrates – mas – e essa é a excepção – na sociedade. Os números que temos para ilustrar essa estabilidade estão, por exemplo, nas greves.

Em 2016, últimos dados disponíveis de acordo com a sistematização feita pela Pordata usando dados do Ministério do Trabalho, atingimos nesse ano o número mínimo de trabalhadores em greve (sete mil). O número de paralisações pode dizer-se que estabilizou – mais uma do que em 2015.

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Nota: 2008 e 2009 não existem dados

Nota: 2008 e 2009 não existem dados

Francisco Assis no congresso do PS teve uma frase que sintetizou o que se tem passado. Dirigindo-se a António Costa disse: “Anestesiaste muito o PCP e o Bloco e isso foi muito bom para Portugal”. Terá sido?

Sendo impossível aceder à realidade paralela, podemos apenas especular sobre como poderia ter sido se o PS, o PCP e o BE não se tivessem entendido para que António Costa fosse primeiro-ministro. Se o PSD e o CDS tivessem formado Governo não teríamos tido a estabilidade social e política de que beneficiámos nestes últimos três anos. A política económica seria seguramente diferente: em matéria de finanças públicas teria sido mais prudente do que a seguida por António Costa. Teria melhores resultados? É difícil de avaliar uma vez que a instabilidade social poderia “comer” os efeitos de medidas mais conservadoras, nomeadamente em matéria de reversão dos cortes salariais na função pública e especialmente dos cortes nas pensões mais altas. E as elites económicas poderiam igualmente ser menos colaborantes.

O que conseguimos hoje perceber melhor é que algumas elites dependentes do Estado não queriam mais o PSD de Pedro Passos Coelho a governar o país. Era preciso que o Estado voltasse a ser rapidamente o que tinha sido para todos aqueles que dependem dele. E não estamos a falar dos funcionários públicos em geral, mas sim de uma elite fundamentalmente lisboeta que vive à mesa do Orçamento – do lado da despesa ou da receita – e que inclui também empresários.

É uma opinião, sim, controversa e difícil de provar com números. Entre os melhores exemplos para apoiar essa tese, de que é da elite urbana que vem o apoio à estratégia do PS, estão os professores, nomeadamente universitários, e os reformados com pensões mais elevadas, alguns deles com carreira na política. As reversões dos cortes salariais, o aumento extraordinário das pensões baixas e a eliminação da sobretaxa criaram condições para que não se reparasse nisso. O tempo nos dirá se entre essa elite não estão também os grandes devedores da banca onde se incluem alguns “empresários”.

Mas é na reacção pública às falhas governativas, aos problemas ou aos casos políticos – ou “casinhos”, como lhe se queiram chamar – que se identificam as mais significativas diferenças em relação ao passado. Ali se vê o efeito de ter o PCP e o BE “anestesiados” na versão de Francisco Assis ou, o que é mais provável, alinhados pelos mesmos interesses. A tudo isto junta-se um Presidente com o perfil de Marcelo Rebelo de Sousa.

Nestes últimos três anos consegue-se identificar cinco grandes conjuntos de acontecimentos que teriam merecido uma dramatização pública profunda se o PCP e o BE estivessem fora do poder – sim, embora não o reconheçam, têm uma aliança com o PS que tem sido até mais pacífica do que aquela que o CDS teve com o PSD.

Elenquemos, pois, os casos: os incêndios; o assalto a Tancos; as polémicas com ministros e secretários de Estado assim como o mais recente episódio que envolveu a CP; a política da CGD e a gestão orçamental.

Os incêndios de 2017, que levaram à morte de mais de 116 pessoas, precedidos de grande instabilidade na Autoridade Nacional de Protecção Civil, teriam gerado no passado as mais violentas criticas. PCP e BE não teriam perdoado a ausência do primeiro-ministro em férias no primeiro incêndio e, justa ou injustamente, a então ministra ter-se-ia demitido bastante mais cedo. Se o primeiro incêndio de Junho, em Pedrogão, já reunia factos bastantes para uma violenta critica ao Governo, mais ainda se justificava quando uma tragédia semelhante ocorreu em Outubro, com 48 mortes. Mas nada aconteceu, como bem sabemos. Responsáveis não existem, com excepção da queda da ministra. Assistiu-se, aliás, a uma espécie de censura, com acusações de “politiquice” ou de “populismo” a quem se atrevesse a criticar a incompetência do Governo. Este ano, o incêndio de Monchique seguiu o mesmo padrão. E não é apenas o comportamento do PCP e do BE que mudou, é o próprio PS que se desresponsabiliza contrastando, por exemplo, com o que se passou quando caiu a ponte de Entre-os-Rios caiu e Jorge Coelho se demitiu.

Fica uma pergunta sem resposta: até que ponto toda esta ausência de critica, exigência e oposição está a contribuir para os problemas que temos tido neste domínio mas também noutros?

O assalto ao quartel de Tancos é outro dos casos que, noutros tempos, teria ditado a demissão do ministro e de chefias militares. É talvez o exemplo mais completo da indiferença que já tudo nos merece, quando vemos uma instituição como a militar a tratar este assunto com a irresponsabilidade pública com que o fez, ao mesmo tempo que o Governo e o Presidente da República se limitam basicamente a declarações públicas ou a definição de calendários.

Estes foram os dois mais graves problemas. No caso dos incêndios, além da tragédia ficou afectada a confiança no Estado – o grave episódio da reacção de pânico no incêndio em Setúbal com automobilistas a fazerem inversão de marcha numa auto-estrada é bem o exemplo dessa falta de confiança. No caso de Tancos é impossível que se tenha mantido o mesmo respeito pela instituição militar.

Temos depois um grupo de episódios reveladores de uma cultura de desleixo, sentimento próprio de impunidade ou falta de sentido de Estado, uns com consequências políticas outros sem elas. Com efeitos que resultaram em demissões temos o caso dos bilhetes para o futebol, não sem que se tivesse tentado que nada acontecesse, ao definir como normal um governante receber ofertas de empresas – recorde-se que um deles era o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Sem qualquer consequência temos o caso do ministro Pedro Siza Vieira, um advogado de referência, que criou uma empresa um dia antes de entrar no Governo e manteve-se como gerente durante dois meses dizendo que assim o fez porque não sabia que tal era incompatível com um cargo governativo.

O mais recente caso é o do comboio fretado pelo PS à CP para transportar os militantes do Pinhal Novo até à festa da rentrée socialista em Caminha. Não existiria nenhum problema e, pelo contrário, a CP estaria a aumentar as suas receitas se, por causa desse negócio, não atrasasse outro comboio e eliminasse outro serviço. O objectivo central da CP é servir o transporte público de passageiros e não fretar comboios. Mas nada disto foi importante nem para o primeiro-ministro nem para os partidos que o apoiam, o PCP e o BE. Sacrificar o serviço público para garantir uma área de negócio que não é nem pode ser central na CP passou a ser uma normalidade.

No sector bancário, se conseguirmos limpar o nevoeiro de decisões populistas, aquilo que vemos é uma fuga generalizada da classe política ao apuramento de responsabilidades no caso da CGD. No processo da Caixa, a conclusão que podemos tirar é que não há um único partido com representação parlamentar que esteja realmente preocupado em encontrar os culpados, entre administradores e grandes devedores que não pagaram, da situação a que chegou o banco público. Um bom exemplo de cumplicidades transversais no regime. Quem paga por essa falta de esforço em recuperar as dívidas da Caixa? Os clientes, especialmente os mais idosos e desfavorecidos. A suprema ironia do destino é o banco público assumir, explicitamente e na prática, uma política com critérios estritamente privados na era em que temos um governo do PS apoiado pelo PCP e o BE. Os clientes mais velhos desorientam-se com as mudanças e os trabalhadores têm de ouvir que beneficiam de mais regalias que as dos outros bancos – coisa que ouviram com certeza na era da troika, altura em que os salários acabaram por ser repostos por decisão do Tribunal Constitucional.

Há ainda o sucesso dos resultados orçamentais que terá de passar pelo teste de uma recessão. Mas neste momento os números já mostram que nenhum outro Governo no passado se atreveu a fazer os cortes na despesa, por via de cativações, que António Costa já concretizou. O PCP, que sempre foi o partido da oposição que melhor acompanhou as contas públicas, fingiu que não percebeu, o mesmo fez o Bloco de Esquerda. Acordaram em finais do ano passado, mas nem as exigências que fizeram têm impedido que a estratégia se mantenha, como se pode ler no artigo de Nuno André Martins, em que se conclui que há congelamentos feitos à margem do Orçamento. É fazer gestão orçamental, sem dúvida. Mas nunca teria sido aceite com esta passividade no passado e são muitas as dúvidas não desfeitas sobre os efeitos nos serviços públicos.

De facto, as estrelas alinharam-se para um governo minoritário do PS governar como nunca conseguiu governar sequer um maioritário. Com Aníbal Cavaco Silva, como demonstram os gráficos sobre as greves, a contestação social era enorme e as criticas a José Sócrates nunca se deixaram de ouvir bastante violentas, no Parlamento, pela boca do PCP e do BE. Nunca como hoje tivemos tanta estabilidade política, social e económica por total ausência de contestação quer de patrões, quer de trabalhadores. O PSD está sem capacidade de influência, o CDS tem a dimensão que tem e todos os que se atrevam a criticar fora do mundo dos partidos são imediatamente classificados e insultados com rótulos de uma lista que inclui invariavelmente epítetos como “fascista”, “direitista”, “queres é destruir o serviço público” ou “queres é privatizar”.

A completar este cenário temos um Presidente da República a quem tudo é permitido graças à popularidade que granjeou. Marcelo Rebelo de Sousa vai estabelecendo prazos para ver os diferentes assuntos esclarecidos – dos incêndios ao assalto a Tancos – e os prazos passam sem que se dê qualquer importância ao facto de não se dar importância nenhuma aos prazos do Presidente.

Se tudo isto é possível só temos de concluir que as elites assim o querem. António Costa, o PCP e o BE conquistaram as elites portuguesas depois do susto que apanharam na era da troika. O problema agora já não é perdermos a esperança de ter um país com uma gestão política, económica e financeira mais desenvolvida, igualitária e exigente. Neste momento podemos mesmo recear muitos mais. Podemos estar a assistir à degradação dos valores – “se eles fazem porque não eu também?”. Podemos estar a assistir à indiferença e incapacidade de nos indignarmos com a incoerência e a injustiça – para além do impulso irritado nas redes sociais. Podemos já estar na fase da aceitação conformada de que seremos sempre assim, dependentes de uma elite que tudo aceita desde que lhe garantam lugar na mesa do poder ou do orçamento.