Quando na província de Banda Aceh, Indonésia, se adotou a sharia, os casos reportados de violência doméstica sobre mulheres aumentaram. Uma pessoa pensante observaria que tal seria de esperar. Sendo o islão hostil às mulheres, quanto mais piedosa for uma região, de pior qualidade serão as gentilezas estendidas às mulheres.
O mesmo se passa nos Estados Unidos. A retórica racista e misógina de Trump teria inevitavelmente de medrar. Logo num país de relações raciais periclitantes – e com razões dos dois lados, desde a escravatura, aos negros a valerem três quintos de um branco na constituição, à segregação nos estados do sul (que terminou anteontem e está longe de sarada), ao KKK, mas também à alta taxa de crimes cometidos por negros ou à desestruturação familiar das comunidades negras, com uma proporção brutal de crianças e adolescentes a crescerem sem contacto com o pai e dependentes de ajudas estatais.
Há pouco tempo li The Reluctant Fundamentalist, de Mohsin Hamid. Podia contar-vos sobre o hábito que tenho de comprar livros e de os guardar até o momento certo de os ler. Neste caso, comprei o livro em 2009, em Guildford; em 2017 fui tomada por uma irreprimível vontade de lhe pegar. Mas prefiro referir os paralelismos que aqui e ali, explicitamente umas vezes, outras não, o autor faz entre o Paquistão e os Estados Unidos, que, escreveu, são ambos ex colónias e continuam com esse estado de alma.
Dei por mim a alargar os paralelismos. Claro que é ridículo comparar o Paquistão com os Estados Unidos, mas alguns são legítimos. O conservadorismo de costumes dos Estados Unidos, felizmente ainda não replicado na direita europeia, está a meio caminho para o islão. A obsessão com a virgindade das filhas dos pais americanos conservadores (com as indecorosas cerimónias de adolescentes com vestidos brancos prometendo aos pais casarem virgens). A ideia estabelecida de que uma mulher com filhos deve ficar em casa e não ter devaneios de carreira profissional. (E leva a que os Estados Unidos sejam, com a Papua Nova Guiné e o Lesoto, os únicos países que não têm licença de maternidade paga). De resto, a vida das mulheres é claramente desvalorizada. A mortalidade materna nos Estados Unidos tem aumentado significativamente para níveis embaraçosos; nos restantes países desenvolvidos diminuiu.
Estas correntes repugnantes mais ou menos subterrâneas americanas eram normalmente estancadas pelos políticos, incluindo os republicanos. Até Donald Trump. Na verdade, o apelo de Trump para a sua base mais leal não tem a ver com questiúnculas da globalização. O apelo irresistível vem de dar voz ao machismo e ao racismo dos que costumavam sentir-se desprezados pelos políticos mainstream.
Trump apela com frequência à violência (contra jornalistas que o escrutinam, por exemplo). Não é de estranhar que os supremacistas brancos se inspirem nas suas palavras, arreganhem os dentes e se entretenham em manifestações nazis e atropelando opositores. O presidente agradeceu-lhes o apoio não condenando a violência dos supremacistas em tempo devido e relativizando-a no meio de outras violências – sem atender ao que se passou no sábado ou ao contexto histórico do país, que já viveu segregação, escravatura ou tolerou o KKK mas nunca uma ditadura de esquerda.
A histeria machista também vai fazendo caminho. Além dos reincidentes ataques boçais de Trump às mulheres, vê-se, por exemplo, na forma como, sempre que Trump se mete em trabalhos graves, as redes sociais trumpistas do mundo inteiro vão buscar novamente os imaginários crimes hediondos da maléfica Hillary. A mensagem é clara: Trump pode à vontade ser um patifório, que há que lhe agradecer ter evitado o cenário mais catastrófico de todos – eleger uma mulher presidente.
Nos dias depois da eleição de Trump também apareceu uma tendência catita. Homens que de súbito sentiram-se legitimados para me falar grosso e mandar calar no meu twitter ou no meu facebook ou no meu messenger. Era como se tivessem visto reposta a ordem natural das coisas: era legítimo outra vez calar as espevitadas que nos últimos anos tinham ganho a absurda ideia que tinham voz tanto quanto os homens. Num dos casos mais suaves, garantiam-me que o meu problema era nunca ter sido apalpada por Trump. Foi fenómeno universal das mulheres objetoras de Trump, e num assomo de vanguarda, Portugal acompanhou esta edificante tendência.
Trump é um político incapaz, passa o tempo ocupado no twitter e com férias e fins de semana (nunca um presidente descansou tanto) em vez de governar (Deus o conserve assim). Nada que implique mais que assinar executive orders (que dependem apenas do presidente, processo que Trump criticava em Obama) tem sido conseguido, apesar da maioria de republicanos nas duas câmaras. A capacidade de concretização de Trump foi manifestamente exagerada.
Mas para os seus indefetíveis, já fez o mais importante: legitimou politicamente ataques à pretalhada e ao mulherio. Vai ter lugar nos corações dos trumpistas (incluindo a versão trumpistas dentro do armário) nas décadas que se avizinham.
E os simétricos dos trumpistas do lado esquerdo poderão continuar a chamar racista e trumpista a qualquer pessoa que, como nos últimos dias em Portugal, ponha em causa o direito de permanência de simpáticos estrangeiros homicidas, violadores, ladrões violentos e que por cá exerçam atividade (a propósito das maiores proteções estendidas recentemente a estas estupendas pessoas pela geringonça). Sem medo do ridículo, nem percebem que a gritaria de ‘racista’ os faz parecer maluquinhos quando o visado é casado com uma guineense. Enfim, é um tempo feliz para os desconchavados da direita e da esquerda.