A União Europeia – esse projeto que eu tanto aprecio (sem nenhuma ironia) mas que teima em esturricar a paciência mesmo de quem lhe é tão benevolente como eu – recomenda que mudemos os manuais de História na parte dos descobrimentos de forma a contrariar, entre outros males, o racismo. Quer a UE que se dê mais atenção ao papel de Portugal na escravatura proveniente de África (e abolição da escravatura) e à violência sobre as populações das ex-colónias.

Por mim, nada contra. Sou muito favorável a que se dê uma visão mais completa e real dos descobrimentos. E se é para dar pancada na autoestima nacional, até vislumbro outros temas que se podem abordar. Saímos todos do secundário supondo que o império português foi um potentado (oh tão longe disso; o império ultramarino mais periclitante que existiu), que conquistávamos tudo pelo Golfo Pérsico e pela Ásia do Sul e do Sueste (não), que deslumbrávamos os orientais com os nossos hábitos europeus (consideravam-nos uns rústicos que ofereciam presentes ofensivos de tão reles), que África foi nossa durante vários séculos e que os ingleses nos roubaram uma grande porção do território por alturas do Mapa Cor de Rosa (dupla gargalhada).

Além de desfazermos estes mitos, podemos acrescentar algumas informações que nos colocam, portugueses e demais europeus, no devido lugar. Até à Revolução Industrial, China e Índia eram mais ricos do que qualquer país europeu, e culturalmente mais apurados. O único domínio que tínhamos era o das armas de fogo.

Aqui chegados, continuemos com a descrição dos países e culturas com que interagimos. Agora em versão negra. Na Índia podemos, por exemplo, ilustrar com os sati, a tradição das viúvas da subcasta rajput se imolarem na pira funerária dos maridos. E do bom uso que se dava à existência de mulheres (a humanidade sempre foi muito criativa neste ponto), que é conveniente termos utilidade além de vivermos, respirarmos, alimentarmo-nos e assim por diante: quando uma família da casta cxatria (os guerreiros) tinha pretensões sociais de pertencer à subcasta dos rajputs (que geralmente fornecia os maharajas e outros governantes menores), mas nem todos lhas reconheciam as ditas pretensões, a solução era matar a viúva na pira funerária do marido; a mulher morria, mas pelo bem maior de provar ao mundo que a família era de boa cepa rajput. Sei lá, a mim interessam-me estas coisas da (des)igualdade de género ao longo dos séculos; presumo que à União Europeia também. E agora vem o escandaloso: sabem quem terminou com os sati? Os colonizadores europeus, os portugueses e os britânicos.

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Continuando na Índia, que tal falar de uma das minhas iniquidades preferidas (é como quem diz), as castas? Para não ser acusada de eurocêntrica, socorro-me de uma citação de Romila Thapar, uma prestigiada historiadora indiana, em Early India, sobre o estabelecimento do estatuto dos intocáveis aí entre o século V e o século III a.C. (e traduzo): ‘A intocabilidade foi talvez o mais degradante estatuto associado a qualquer grupo social e foi eticamente completamente injustificado.’ Também podemos lembrar os sacrifícios humanos das civilizações sul-americanas, a que os malvados conquistadores puseram fim. Há muito por onde escolher.

E, se formos verdadeiramente ousados, até conseguiremos apontar uma ou duas ocorrências interessantes que nos – cruz credo – permitem ter alguma vaidade. A Aula da Esfera, por exemplo, que Henrique Leitão tem divulgado muito. Os ensinamentos desta aula de matemática do Colégio de Santo Antão, dos jesuítas, permitiram que em 1614 chegasse a Pequim a notícia dessa nova invenção que era o telescópio e que em 1618 se construísse um para o observatório imperial. O Bureau do Calendário, que determinava o calendário chinês, os eclipses e a altura para as sementeiras e as colheitas, estava a cargo de jesuítas formados na Aula da Esfera. E o Tribunal das Matemáticas da corte de Pequim teve presidentes que eram missionários portugueses, como Tomás Pereira, Félix da Rocha ou André Rodrigues.

O ensino da História é muito importante, concordo. Já outro imperador de Pequim, Mao Zedong, recomendava que se usasse o passado para servir o presente. Combater o racismo em Portugal agora é um bom objetivo, e se a História puder ajudar, tanto melhor. Aplaudo que se mostrem os contributos, atuais ou mais distantes, dos afrodescendentes. Mas que não se tornem os manuais no cliché estafado ‘europeus maus, todos os outros anjinhos celestiais’.

Ensine-se aos adolescentes que as realidades nunca são a preto e branco, mas têm camadas e perspetivas. Que não se deve olhar para os tempos passados com as lentes do século XXI e é muito tonto fazer juízos de valor de outros contextos temporais usando a moral atual. E, no fim de tudo isto, deem aos miúdos um certificado de mestres em História.