No início, o ar era como uma espécie de continuidade territorial dos Estados, altamente regulamentado e regulado. Isto significava, que para voar de Lisboa para Madrid, por exemplo, os Estados português e espanhol tinham de acordar e assinar um acordo de tráfego aéreo no qual se determinavam os aeroportos portugueses e espanhóis que poderiam beneficiar de voos diretos entre eles, o número máximo de  frequências semanais e de quais e quantas companhias de cada país poderiam realizá-los. Este tipo de acordos geralmente limitava o espaço aéreo às respetivas companhias aéreas, ditas de bandeira, de cada país. E para cada país era necessário elaborar um acordo individual. Todo um processo político e legislativo, muito antes do projeto comercial envolvido.

Convém dizer que, nesse tempo, o negócio aéreo era um nicho restrito, não era um meio de transporte de massas. E durante muito tempo, essas mesmas restrições também impediram o desenvolvimento do negócio. Voltando ao exemplo de Lisboa-Madrid, durante décadas, esta rota esteve limitada ao máximo de dois voos diários atribuídos a cada uma da companhias de bandeira – no caso, a TAP e a Iberia. Neste quadro, mesmo que a TAP ou a Iberia quisessem aumentar as suas frequências entre Lisboa e Madrid, ou caso uma terceira ou quarta companhia quisessem competir nessa rota, tal não lhes seria permitido. Esta limitação tinha um efeito simultaneamente perverso no desenvolvimento natural dos negócios e da concorrência e protetor das “sortudas” companhias de bandeira que mantinham, assim, muitas rotas essenciais de forma quase exclusiva nas suas mãos. Por outro lado, manteve e criou esse apego do consumidor à “sua” companhia de bandeira porque, na realidade e na maioria do casos, apenas existia essa opção. Isto explica, em parte, que gerações mais velhas falem da TAP de uma forma mais emotiva, mais saudosista e que reajam de uma forma mais apoiante quando confrontados com uma questão radicalmente colocada para efeitos de sondagem: “Acha que o Estado deveria investir 3 mil milhões na TAP ou acha que deve deixar cair a TAP?”. Ou seja, no limite do exemplo ilustrativo deste artigo, existe o risco de se pensar que se a TAP não existir, deixaremos de poder viajar para Madrid de avião ou que apenas o poderemos fazer na Iberia. Curiosamente, foram estes obstáculos que impediram, durante anos, o desenvolvimento saudável de uma companhia de aviação 100% portuguesa – a Portugália – e que viu o seu início de atividade limitado a poder voar apenas para aeroportos europeus e em rotas não operadas pela TAP. Quantos empregos, quantas rotas e quanta riqueza se poderiam ter gerado!

Todos sabemos e sentimos que a vida é mais cara hoje do que há 30 anos… mas no que toca à aviação, quem se lembra de alguma vez ter pago quatro contos para ir de avião até Madrid (ou Londres ou Paris e tantos outros destinos)? O que permitiu mudar esta situação foi o quadro legal ruropeu da desregulamentação aérea dos anos 90, que deitou abaixo os acordos bilaterais de tráfego aéreo. Dentro do espaço europeu, qualquer companhia passou a poder voar de onde quiser e para onde desejar, tantas vezes por semana ou por dia quantas julgar viáveis, sem qualquer intervenção do poder político e sem quaisquer limitações – apenas as que resultam de eventuais leis do ruído noturno ou das restrições de espaço nos aeroportos (os chamados “slots”). Isto explica, que antes da pandemia tenha possível embarcar na Portela num avião da easyJet registado na Áustria, mas com base operacional de aviões e tripulações em Lisboa, e aterrar em Barajas duas a três vezes por dia. A liberalização das tarifas, dos horários e das frequências permite, igualmente, que o regresso seja feito de acordo com a conveniência do consumidor, mas falando em espanhol num avião da Air Europa, por exemplo. As consequências? Deixámos de ter bebidas e refeições incluídas na tarifa, mas passamos a ter uma acessibilidade muito maior e mais fácil a esta rota (e a tantas outras), ou seja, garantimos uma maior e melhor conectividade aérea do país; por outro lado, se para a TAP não faz sentido operar determinada rota, qualquer outra companhia aérea europeia – baseada ou não em Portugal – poderá fazê-lo. Foi isso que aconteceu quando a TAP abandonou todas as (poucas) operações europeias sem escalas que chegou a ter do Funchal e de Faro. E foi isso que aconteceu no Porto, onde manteve apenas alguns (poucos) voos diretos a outras cidades do continente europeu. De um ponto de vista da conectividade aérea, tudo se resolveu e continua a ser um trabalho em progresso, este de atrair e de demonstrar a rentabilidade que uma companhia pode obter ao voar para um destino nacional. Quando essa solução passa por uma companhia com base operacional no país, melhor ainda, pois promove-se a conectividade e o emprego direto na aviação comercial em Portugal. As novas gerações – as que fizeram viagens de finalistas nas Canárias, as que estudaram em Erasmus na Suécia e as que visitam o melhor amigo que vive em Londres – cresceram neste novo quadro europeu do qual Portugal faz parte. Beneficiam, enquanto consumidores, da escolha da companhia, do preço, da flexibilidade dos horários e da diversidade de rotas possíveis e é isso que valorizam. Esta é a realidade das novas gerações para quem um avião é, literalmente, um “autocarro aéreo” (Air-bus), um meio de locomoção prático e equivalente a um Uber, a uma Gira ou a um comboio, com a única diferença que voa e que percorre distâncias maiores. Naturalmente, devemos escutar com atenção o que estas gerações nos dizem: são elas que, na realidade, vão pagar os impostos correspondentes à ajuda que se der à TAP.

E que fique claro para todos: os 3 mil milhões não vão servir para manter a TAP pre-Covid, nem para aumentar o emprego ou a conectividade aérea do nosso país…bem pelo contrário! Esse dinheiro – sem garantia alguma de retorno – vai servir apenas para termos uma TAP mais pequena (fala-se em 85 aviões em vez dos 108), com menos rotas, menos destinos e menos empregados (fala-se em 7 mil em vez de 10 mil).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Conclusão:

  • A elaboração de uma sondagem pode ser facilmente tendenciosa e sugestiva, comprometendo ou conduzindo as respostas numa determinada direção pretendida. Claramente, a recente sondagem da TSF-DN-JN, em que a pergunta parece ter sido “deixar falir a TAP, sim ou não?” teve como resultado – inconsciente ou propositado – de dividir o país em Norte/Sul, velhos/novos, esquerda/direita, homens/mulheres. Esta triste tendência de tudo politizar e de tudo extremar peca por isso mesmo: a relevância das soluções técnicas à disposição passa para segundo plano e desfoca-se completamente do essencial. A questão, vejamos, nem deveria ser a TAP em si, mas, sim, aquilo que realmente está em causa: a conectividade aérea e o emprego. Nenhum destes aspetos é, economicamente falando, um exclusivo da TAP.
  • Aos futuros sufragistas de opiniões e redatores de entrevistas para sondagens sugiro, por isso, que acrescentem a seguinte questão: “Estaria interessado numa solução alternativa à TAP e economicamente viável, que garantisse e estimulasse a conectividade aérea de TODO o país para efeitos de turismo, de negócios e da proximidade das comunidades portuguesas e que, simultaneamente, mantivesse e criasse algum do atual emprego na aviação comercial em Portugal?”

Estou seguro que esta pergunta, aquela que realmente foca no resultado que se pretende obter, independentemente da companhia ou das companhias em concreto que o realizarão, reunirá um verdadeiro consenso nacional, da esquerda para a direita, de Norte a Sul, das ilhas ao continente e que aí sim, se possa encontrar uma terceira via conciliadora e o início de um plano bem estudado e eficaz, baseado em factos, não em emoções nem agendas políticas, que beneficiará a todos por igual – companhias e consumidores – com um custo infimamente menor e sem transformar o Estado num investidor de milhares de milhões e num gestor de uma companhia aérea específica e tecnicamente falida.