Nos últimos 20 anos assistiu-se à falência de inúmeras companhias aéreas. 11 de Setembro, SARS, preço do petróleo, crise financeira, guerras e concorrência das companhias de baixo custo, entre tantos outros fatores externos, serviram de pano de fundo para algo que faz parte das vicissitudes de qualquer empresa: má gestão e falta de liquidez para enfrentar a mudança. Concentremo-nos em três casos europeus recentes de companhias ditas “de bandeira” que fecharam as portas e no que, de facto, aconteceu.

Poucos meses após a falência da Swissair, em 2001, constatou-se um fenómeno curioso: um número elevado de salões de beleza (manicure, pedicure, cabeleireiros) abriram igualmente falência. A razão é simples, mas só mais tarde seria compreendida: muitos desses salões sustentavam-se das assistentes de bordo, clientes outrora assíduas. Por isso sim, é verdade, quando uma companhia aérea desaparece, é mais do que a bandeira de um país que se esvanece, é mais do que o turismo que é afetado; existe, na realidade, toda uma cadeia de serviços e empresas que estremecem. Mas isso também é verdade para qualquer empresa de grande porte que feche portas, mude a sua sede para outro lugar ou, até, quando passa os seus trabalhadores para teletrabalho.

Os casos da Swissair na Suíça, da Sabena na Bélgica, da Malev na Hungria, da Pluna no Uruguai, da Varig no Brasil e da TAP em Portugal têm tudo isto em comum: companhias nacionais que gozavam ainda do antigo estatuto e das emoções associadas à bandeira, companhias com dívidas incalculáveis e com anos acumulados de má gestão e de avultados prejuízos. Perante o quadro extremo de penúria e de falta de liquidez e de perspetiva financeira para essas companhias, os governos desses países, mesmo os mais ricos como o da Suíça, decidiram assumir as potenciais consequências dessas falências. Os perigos então mencionados para contrariar essa decisão eram, em tudo, semelhantes aos que ouvimos hoje para o quadro atual da TAP: quebra do turismo, custos sociais, desemprego em vários setores, perda emocional e prejuízo da imagem do país, agravada por uma acessibilidade comprometida do destino para viagens de qualquer natureza. No caso da Suíça, acrescia a imagem internacional de funcionamento perfeito do país; no caso da Sabena, o prestígio associado à “capital da Europa” e da extrema importância da sua acessibilidade para as instituições europeias e internacionais; no caso da Malev e da Pluna, a relevância dessas companhias para o transporte de turistas, um dos principais setores económicos dos seus respetivos países. Ainda assim, e praticamente sem pré-aviso preparatório, essas companhias faliram no meio de uma economia global em pleno funcionamento, ou seja, os dias e as semanas que se seguiram foram de total caos: turistas sem rumo nos aeroportos com bilhetes que não valiam mais nada, nem para ir nem para voltar, conferencistas sem viagem, empresários sem negócios, reuniões sem participantes, hotéis com reservas em limbo, todo um plano económico de semanas e meses que, de um dia para o outro, ficaram comprometidos.

Eis, então, a primeira grande diferença em relação ao cenário de hoje: turistas são poucos, as reuniões de trabalho há muito que deixaram de ser presenciais e passaram a ser por Zoom. As reservas para datas futuras das companhias aéreas são ínfimas e a compreensão geral para a mudança de planos nas poucas viagens programadas é ponto assente para o público . Em muitos aeroportos europeus, temos de recuar aos anos 50 e 60 do século passado para contar números mensais tão baixos do tráfego aéreo. O caos e disrupção que normalmente se vivem em qualquer falência de uma companhia aérea estão praticamente anulados pela atual situação de pandemia em que vivemos.

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A conectividade aérea era fundamental para todos estes países e cada um, à sua maneira, resolveu essa situação. Focando-nos nos casos europeus mencionados, temos:

  • A companhia regional da Swissair, a Crossair, assumiu o papel da sua antiga empresa-mãe e da Crossair, habituada a voar entre cidades secundárias, nasceu a Swiss. Este projeto de renascimento apelidado de “Phoenix” na altura, contou sim, com total apoio e intervenção do governo da Suíça, cuja intenção foi sempre a de garantir o início da Swiss enquanto peça fundamental da conectividade do país para a vender depois. A Crossair tinha um balanço limpo, uma estrutura salarial menos pesada e mais atual e era cada vez mais usada pela Swissair para os seus voos europeus. Uma espécie de Portugália, por assim dizer. Inicialmente mais pequena do que a Swissair, esta Swiss que nasceu da Crossair e que era temporariamente estatal, é hoje maior do que a Swissair alguma vez foi e os seus anos de rentabilidade foram reconhecidos e compensados pela compra total por parte do Grupo Lufthansa ao Estado suíço, em 2007, que, nesta operação, vendeu mais caro do que aquilo que investiu e garantiu, em acordo assinado, a manutenção de postos de trabalho e de rotas de longo curso na Suíça. Aprendamos com o Estado suíço como fazer dinheiro com companhias aéreas.
  • Na Bélgica, a solução seguida foi semelhante à da Suíça, mas com maior tempo de intervalo entre a falência da Sabena e a criação da sua sucessora. A SN Brussels Airlines foi o resultado de um consórcio privado-público ao nível regional, ou seja, apenas comprometeu financeiramente os poderes públicos de Bruxelas e Valónia. No fundo, é algo semelhante ao que é reclamado por todas as outras regiões do nosso país que não se veem beneficiadas – e com razão – pela sustentação incomportável de uma TAP com sede operacional numa única cidade. Na Bélgica, país mais pequeno, com um único verdadeiro aeroporto à escala para todo o país e melhor conectado internamente em termos de transportes, resolveu-se essa questão – e bem – com as regiões mais diretamente envolvidas a arcarem o peso desse investimento. A SN Brussels Airlines também se serviu de uma companhia regional da holding da Sabena, a DAT (Delta Air Transport), para ser oficialmente criada em 2002. Preocupava, na altura, não só assegurar as ligações a todas as capitais da UE e a Estrasburgo, como também servir o continente africano, sobretudo os países francófonos, antigo terreno fértil da Sabena. Todos os outros destinos da Sabena na Ásia, EUA e Canadá não foram considerados pela sucessora e depressa as companhias desses países lançaram novas rotas para Bruxelas ou aumentaram as já existentes. Em 2009, a Lufthansa, atraída pelo nicho de mercado da Brussels Airlines (África) e pelos resultados líquidos positivos da companhia, começou a comprar ações da companhia até se tornar dona integral em 2017. Entretanto, a companhia cresceu e voltou a servir antigos destinos da Sabena para os EUA/Canada e Índia. Aprendamos com o Estado belga a responsabilizar financeiramente as regiões efetivamente beneficiadas com a “nova” companhia aérea pós-crise.
  • Na Hungria, falou-se na criação de uma nova companhia estatal após a falência da Malev enterrada em dívidas há décadas. Porém, enquanto os políticos húngaros faziam contas para ver como poderiam financiar uma nova companhia aérea num quadro de crise financeira profunda do país, a lei e concorrência europeias não perdoaram e agiram com total rapidez: o mercado aéreo livre significa que qualquer companhia aérea europeia pode estabelecer a sua base operacional em qualquer país da União e começar qualquer tipo de voos a partir dessa base. O cobiçado mercado turístico húngaro e a falência da Malev provocou uma reação quase imediata por parte das companhias de baixo custo Ryanair e WizzAir à partida de Budapeste, que nesse aeroporto basearam mais aviões e mais funcionários para preencher o vazio deixado pela Malev. Também beneficiaram da disponibilidade imediata de mão-de-obra preparada e qualificada para comandar e fazer funcionar os seus aviões. A resposta natural do mercado, seja das companhias que basearam aviões em Budapeste, seja das que incrementaram os seus voos para a Hungria, fez com que, mesmo hoje, quase uma década depois, nunca mais tenha sido tentada a criação, quer por iniciativa pública, quer por iniciativa privada, de uma sucessora única e oficial à extinta Malev. Mais recentemente, a companhia LOT da Polónia baseou aviões em Budapeste para operar voos de longo curso diretos para os EUA e Ásia. Aprendamos com o Estado húngaro, que destinos estabelecidos não desaparecem com uma companhia aérea; a companhia aérea é apenas uma das transportadoras possíveis e o mercado autorregula-se.

Conclusões:

  • Os grupos de aviação e outros privados interessam-se por empresas viáveis ou com potencial. No caso da TAP, há muitos anos que se ouvem rumores sobre o suposto interesse do Grupo Lufthansa. Na altura da Swissair e da Sabena também se falava de um suposto interesse semelhante para salvar essas empresas. O Grupo Lufthansa nunca concretizou o interesse nas antecessoras da Swiss ou da Brussels Airlines em que efetivamente investiu, porque, enquanto grupo financeiro ativo na aviação comercial, o Grupo Lufthansa apenas se interessa por empresas sustentáveis.
  • Se olharmos para os últimos 45 anos da história da TAP, foram raríssimos os anos em que deu lucro e, geralmente, ligado a circunstâncias excecionais de venda de ativos da empresa. Foram realizados investimentos públicos na TAP diversas vezes, sempre com a promessa falhada de, daí a 5-10 anos, dar lucro ou pagar-se a si própria. Nunca aconteceu. E não há, muito menos agora, qualquer razão para acreditar que isso mudará. Ou seja, sob um ponto de vista puramente financeiro, investir na TAP é um erro e continuará a sê-lo dentro dos moldes propostos recentemente. Se o problema é o emprego, então vamos resolvê-lo de forma sustentável. Se o problema são os turistas e as comunidades portuguesas que ficam supostamente com o acesso ao país comprometido, então vamos resolvê-lo de forma sustentável. Se o problema é o posicionamento estratégico do país, então vamos resolvê-lo de forma sustentável.
  • Portugal tem turistas pelo destino que é e pela reputação e mérito reconhecidos. Mesmo sem voos diretos TAP para qualquer lado a não ser para Lisboa, o Algarve e a Madeira são dos destinos mais turísticos do país. E não faltam companhias estrangeiras a voar para Faro ou Funchal, assumindo aquele que poderia ser, teoricamente, o papel da TAP. No outro extremo, não foi por ter um aeroporto em Beja, que o Alentejo se tornou num destino internacional com voos diretos para esse aeroporto. Ou seja: é preciso mais do que a simples existência de um aeroporto, é preciso mais do que uma TAP para fazer vingar um destino. No limite, se é essa a intenção e se é essa a preocupação, poderíamos usar esse dinheiro e fazer uma campanha na CNN e noutros canais: chegue a Portugal em 2021 (com qualquer companhia) e o Estado português reembolsa o gasto de transporte.
  • Existem, felizmente, outras companhias em Portugal em situação financeira frágil, mas menos pior do que a da TAP: a Azores Airlines, com a sua vocação atlântica e insular e usando a mesma frota de A321LR e de A320, poderia rapidamente integrar uma parte da TAP e assegurar a continuidade territorial do país, assumindo todas as ligações aos arquipélagos. Simultaneamente, a Azores Airlines já serve alguns aeroportos nos EUA e Canadá há vários anos. Aliás, Boston e Toronto, destinos voados pela TAP nos anos 90, nunca deixaram de ser servidos pela Azores Airlines, inclusive através de voos sem escalas a partir do Porto e de Lisboa. A EuroAtlantic Airways, outra companhia portuguesa de voos charter e regulares, a única que alguma vez aterrou em Díli, tem um historial de décadas de voos regulares para Bissau e para São Tomé. Foi também a companhia subcontratada pela própria TAP para voar para Caracas durante vários anos. A EuroAtlantic poderia facilmente crescer e passar a assegurar outros destinos em África, como Cabo Verde, Luanda e Maputo, e outros destinos no Nordeste brasileiro, graças à parceria EuroAtlantic-Grupo turístico Sonhando. Finalmente, temos as bases da Ryanair e easyJet em várias cidades do solo português, com tripulações e pessoal baseados nos vários aeroportos nacionais (e não apenas em Lisboa). A easyJet, por exemplo, tem uma frota em tudo semelhante à de médio-curso da TAP e já voa para muitos dos mesmos aeroportos servidos pela TAP. Obviamente, cresceria a sua base de Lisboa, caso a TAP deixasse de servir outros destinos e passaria a integrar mais quadros portugueses em território nacional nesse caso. Outras companhias, como a Wizzair, no médio curso, ou a Level, no longo curso, poderiam facilmente abrir bases em Lisboa e ocupar uma parte do espaço não servido num cenário sem a TAP. Esta facilidade e rapidez de resposta por parte destas companhias existe hoje mais do que nunca, porque a situação de pandemia levou a que muitos dos seus aviões estejam inoperativos e a aguardar a retoma do mercado (ou o investimento em novos mercados) para voltarem ao trabalho.
  • A própria TAP Express, companhia subsidiária da TAP, poderia ser usada para guardar apenas aquilo que de bom resta da TAP, à semelhança do que aconteceu com as companhias regionais que serviram de trampolim para as sucessoras da Swissair e da Sabena.

Todas estas condições de absorção de parte das rotas, do pessoal e da frota da TAP e, inclusivamente, a existência de fundos para atrair novas companhias – as asiáticas, por exemplo – para voar diretamente para Portugal, poderia ser algo negociado e co-financiado muito mais adequadamente pelo Estado português enquanto facilitador e estimulador do mercado, do que vermos um Estado português novamente gestor de uma companhia aérea, função essa que comprovadamente nunca soube desempenhar. É, por isso, um risco inconsciente e um erro estratégico abismal decidir, em nome do contribuinte português que quer mais e melhores escolas, que quer mais e melhores hospitais, que quer mais e melhores meios para combate aos fogos florestais, que quer mais e melhor Polícia, que quer mais e melhor serviço público onde ele é realmente necessário, subvencionar, uma vez mais e em milhares de milhões de euros, uma TAP com o histórico nacional e internacional disponível e afirmar que essa é a única solução para garantir a conectividade e o emprego na aviação, hotelaria e turismo no país. É mentira!