Fui educado por uma mulher de esquerda. Dizê-la socialista seria talvez excessivamente partidário, mas é, sem dúvida, uma progressista. Lembro-me de a ver desenhar a campanha de Jorge Sampaio à Presidência, que depois ofereceria por mero espírito cívico. Lembro-me, sobretudo, dos serões que partilhava com as demais mulheres de esquerda. Maria Teresa Horta, histórica feminista perseguida pelo Estado Novo, Maria Manuel Viana, lutadora incansável contra a violência doméstica em Portugal, Lídia Jorge, autora do romance que eternizou o 25 de Abril na nossa literatura.

De certo modo, cresci com a sua presença, ou com a presença das suas vozes, e com uma noção distinta do protagonismo da igualdade no seu pensamento. Nunca discuti, evidentemente, política com nenhuma das escritoras ou escritores que a minha maternidade literária me foi apresentando. Era um sonolento espectador da vida adulta – política e criativa – de um círculo que não era o meu, mas que era o dos meus. Ouvia-os, com a curiosidade característica de uma criança, e fez-me bem ouvi-los.

A arte e os corredores culturais são lugares de tendência ecuménica e a beleza de ter crescido nesses corredores contrasta com a polarização contemporânea em que, de uma forma ou de outra, todos acabamos por fazer combate político. A minha consciência política, que despontou no final do socratismo, e a minha participação cívica, que se estreou na eleição da coligação PàF, não poderiam ser mais distantes da educação igualitária e idealista que tive. E a verdade é que não houve problema algum com isso. Ser filho de uma romancista e de um repórter, na junção entre sonho e realidade, ideias e factos, ofereceu-me a sorte de gozar ambas as dimensões.

Isto para dizer que sinto, sinceramente, respeito pelo papel dos socialistas no nosso regime. Apesar de crítico, especialmente deste PS, creio que a sua existência presta um serviço insubstituível na representação de um largo eleitorado nacional e, mais do que isso, na estabilidade da República enquanto seu pilar fundador. Eu compreendo por que é que um socialista é socialista, mesmo que discorde em tudo do socialismo. À instituição, o Partido Socialista, devemos o ímpeto europeísta e a coragem física de Mário Soares, a importância do que disse e fez na Fonte Luminosa, a sua gratidão à Igreja pela mobilização que gerou nesse dia histórico, a sua exposição daquelas que eram, de facto, as intenções anti-democráticas do PCP e, claro, o seu apoio ao 25 de Novembro de 1975.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O país, o parlamento e o PS terem esquecido isso, quase quarenta e cinco anos depois, é lamentável e verdadeiramente perigoso. Num tempo em que o populismo se tornou a regra, em que um partido em ascensão assume como bandeira o fim do regime (e a urgência de uma IV República), os partidos que fundaram e estabeleceram a democracia portuguesa devem defendê-la; não negar a sua história. É esse, para mim, o principal risco de um PS esquecido de si mesmo: dificilmente alguém o relembrará.

Ninguém, naquela Assembleia, coloca em causa que foi Abril que pôs termo a quatro décadas de ditadura, mas cada vez menos aceitam que foi Novembro a garantir que teríamos depois quatro décadas de democracia. Ao renunciar à sua paternidade da República enquanto democracia liberal, o Partido Socialista permite que qualquer um a coloque em causa. É bizarro que o Chega, como força política contra o regime, tenha sido o partido mais vocal na defesa de uma data tão marcante para o regime – não pelo oportunismo de Ventura, mas pela oportunidade que lhe foi dada.

Prestes a alcançar o seu cinquentenário, a III República não encontrou ainda unanimidade na sua natureza, havendo um consenso na prática e um conflito no espírito. Desvalorizar o 25 de Novembro, como a larga maioria o fez esta semana, é conferir opacidade a uma linha que já deveria ser clara há muito: Portugal é uma democracia liberal e não uma república popular. A liberdade de andarem a discuti-lo com tamanha irresponsabilidade deveria ser prova suficiente.