1 É inevitável. Eles podem conseguir disfarçar as alegadas diferenças de projeto (que as têm) durante algum tempo mas há sempre uma altura em que percebemos que são farinha do mesmo saco. Há sempre um momento em que aquilo que os une, vem sempre ao de cima.
Vou direto ao assunto para que o leitor tente descobrir as diferenças:
a) “A escalada da guerra na Ucrânia e a espiral de sanções [da União Europeia] são indissociáveis da desenfreada especulação e aumento dos preços de energia, alimentos e outros bens de primeira necessidade.”
b) “Até à data, aqueles que foram sancionados estão a ganhar, enquanto aqueles que puseram as sanções em vigor estão de joelhos. É evidente que alguém na Europa fez um mau cálculo.”
Por mais surpreendente que possa parecer, a frase da alínea a) foi dita pelo comunista Jerónimo de Sousa , enquanto a autoria da alínea b) pertence a Matteo Salvini, líder da Liga Norte (extrema-direita). O que comprova que o Partido Comunista Português (PCP) e a Liga Norte (como quaisquer outros extremistas de esquerda e de direita) têm mais coisas em comum do que à primeira vista possa parecer.
2 No caso, o ódio à União Europeia (o PCP defende que Portugal deve abandonar o euro e deixar de ser Estado-membro) e a cumplicidade com Vladimir Putin — duas questões que andam de mãos dadas.
Temos de ser claros: responsabilizar única e exclusivamente a União Europeia (UE) pela subida dos preços do gás, da energia elétrica e dos combustíveis é fazer o jogo de Putin, esquecendo a realidade que nos trouxe até aqui.
Quem invadiu a Ucrânia, violando grosseiramente o direito internacional, foi a Rússia de Putin. Quem se baseia pura e simplesmente na chantagem como guia da sua política energética há muitos anos, ameaçando qualquer país do leste europeu que o afronta com o corte no fornecimento de gás, é a Rússia de Putin. E quem começou já a cortar o fornecimento de gás, e irá continuar durante o inverno, é a Rússia de Putin.
Acresce a tudo isto que a desestabilização do mercado europeu energético, que os especialistas sempre disseram que iria provocar um aumento da inflação para níveis que não víamos há muito, sempre foi um dos objetivos de guerra de Putin.
As posições do PCP e de Salvini (e de outros partidos congéneres) concretizam o principal objetivo do ditador russo com o corte do gás: promover a divisão e o confronto entre os europeus, cortando o gás e promovendo uma subida asfixiante dos preços.
3 Se Matteo Salvini chegou a vestir t-shirts de Putin em plena Praça Vermelha, em Moscovo, e dizia que o presidente russo era o “melhor estadista no planeta”, o PCP sempre foi mais discreto. Mas a invasão da Ucrânia trouxe ao de cima a verdadeira natureza da relação dos comunistas portugueses com o regime de Putin: a cumplicidade.
Podemos ser justos e dizer que a subserviência (e até servilismo) que o PCP sempre demonstrou perante a União Soviética (que se explicava pela ortodoxia ideológica mas também pelo financiamento direto que vinha de Moscovo), foi agora substituída por uma discreta mas eficaz cumplicidade.
Veja-se, por exemplo, a nova narrativa do PCP: a teoria do “cerco”. Os russos, coitados, estão cercados pela NATO — que, como sabemos, tinham centenas de milhares de soldados na Ucrânia, Polónia, países báltios, Finlândia, Suécia (e, se calhar, até na China!) prontos a invadir a Rússia.
Além, claro, de os Estados Unidos (sempre o Lúcifer de qualquer história) “querem lutar até à morte do último ucraniano”, porque, como é óbvio, os ucranianos não existem enquanto comunidade nacional e soberana e nem sequer querem defender a sua terra.
Logo, e segundo a mesma teoria, a Rússia de Putin teve de fazer uma “operação especial” na Ucrânia para os salvar dos manipuladores dos americanos e para romper o “cerco”.
Estes raciocínios infantilizados, além de muito próximos dos argumentos de Putin, estão de tal forma desligados da realidade que só podemos concluir que o pensamento de seita criou raízes muito profundas no PCP. Algo que não me surpreende, confesso.
4 A “coerência”, esse tão repetido (e enjoativo) elogio que se costuma fazer ao PCP, levou os comunistas a emitirem um comunicado vergonhoso sobre a morte de Mikhail Gorbachev. Foram coerentes porque foram praticamente o único partido europeu que em agosto de 1991 apoiou o golpe de Estado através do qual os ultra-conservadores soviéticos, liderados pelo líder do KGB (Vladimir Kryuchkov), tentaram depor Gorbachov como secretário-geral do PCUS e líder da União Soviética.
Para um partido que se diz tão defensor da “fraternidade”, da “solidariedade” e da “paz” — até costumam fazer parte do lema da Festa d’O Avante — e tão institucionalistas, os comunistas portugueses foram incapazes de demonstrar no comunicado uma réstia de humanidade perante a morte de alguém. E porquê? Porque os comunistas não perdoam quem deixou de ser comunista.
E, de facto, Gorbachev deixou de o ser, apesar de ter acreditado na União Soviética até renunciar ao cargo no dia de Natal de 1991 e viabilizar a dissolução daquele Estado.
Gorbachev fez algo que, se calhar, é ainda mais imperdoável para a ortodoxia do PCP: tentou democratizar o sistema soviético, quebrando com a cultura do partido único, tentou impor liberdade num país que nunca a teve (apesar de nunca ter sido eleito na sua vida) e tentou reformar um sistema económico centrado na economia planificada que nunca poderia funcionar porque não respeita a natureza humana.
Mais do que tudo isso, contribuiu de forma decisiva para o fim da Guerra Fria porque percebeu que a União Soviética não aguentava mais esse fardo. E, com isso, contribuiu claramente para a paz mundial.
Nada disto é reconhecido pelos comunistas portugueses — que ignoram a existência do Gulag e o aparelho de repressão monstruoso criado pela União Soviética em todo o leste europeu. Como não é por outros extremistas marxistas, como o inefável Pablo Iglésias, que acham que a União Soviética“afastou a humanidade de um futuro viável” , como aquele que marca o presente da Venezuela, certamente.
O PCP representa cada vez mais uma espécie de exuberância do nosso sistema político. Uma exuberância que vale entre 3% a 4% nas últimas sondagens, com tendência para descer. Que parou no tempo e que inevitavelmente terá o mesmo fim que todos os partidos comunistas europeus tiveram há muito, muito tempo: a irrelevância ou o desaparecimento.
5Por muito que lhes custe, os herdeiros do totalitarismo comunista e fascista, os herdeiros daqueles que fomentaram a guerra, a barbárie e a ditadura na Europa do séc. XX não conseguem escapar à inevitabilidade de serem as duas faces de várias moedas: as da intolerância, do extremismo, da violência e agressividade verbal, das soluções únicas e mágicas e do facto de se julgarem donos e senhores da razão, o que os legitima (aos seus olhos) a esmagarem o adversário com a alegada superioridade das suas ideias.
Essa inevitabilidade atingiu este fim-de-semana o PCP e Matteo Salvini. Como poderia atingir André Ventura e Jean-Luc Mélenchon, Pablo Iglésias e Marine Le Pen ou Catarina Martins e Santiago Abascal.
Têm diferenças entre si mas, no final do dia, são todos, repito, farinha do mesmo saco.
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