O primeiro efeito da ascensão da Espanha ao grupo dos quatro grandes da UE, em consequência da retirada do Reino Unido, parece ter sido o regresso das disputas territoriais europeias.

A proposta de que, “depois de o Reino Unido deixar a União, nenhum acordo entre a UE e o Reino Unido pode aplicar-se ao território de Gibraltar sem o acordo entre o Reino de Espanha e o Reino Unido” (carta enviada pelo Presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, a 31 de março, aos restantes 27 Estados-membros com as linhas de orientação da UE nas negociações do Brexit), vem reviver séculos de reivindicações e conflitos de vizinhança que afetam a maioria dos países europeus. Um dos casos mais conhecidos é o da Alsácia-Lorena, atualmente território francês, mas que foi vítima das políticas inconciliáveis de “fronteiras naturais francesas no rio Reno” e “unificação das populações de língua alemã”.

Efetivamente, uma das condições subjacentes, mas fundamentais, para a criação da Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia, foi o “congelamento” dos vários conflitos territoriais existentes à época, não tendo os tratados europeus acarretado quaisquer modificações das fronteiras dos países, ao tempo da sua assinatura.

Curiosamente, a Espanha resolveu retirar este esqueleto do armário da história quando ela própria tem pendentes várias disputas territoriais, nas quais se encontra numa posição semelhante à do Reino Unido – as plazas de soberanía em Marrocos, que compreendem as plazas mayores de Ceuta e Melilla, e as plazas menores, que incluem cinco ilhas e dois peñones. Isto para além de uma disputa territorial que nos diz diretamente respeito: Olivença.

Sem querer entrar nos pormenores histórico-jurídicos das disputas, os casos têm em comum a ocupação de territórios de países terceiros, anexados pela força, cuja apropriação é contestada, em diversos graus, pelo país onde se situam.

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Tendo esta vulnerabilidade por pano de fundo, o que levaria a Espanha a abrir, neste tempo atual em que nos movemos, esta autêntica Caixa de Pandora da história europeia?

Uma oportunidade? No referendo de 2002, a população de Gibraltar pronunciou-se 96% a favor da pertença ao Reino Unido. O Brexit, com a previsível limitação da circulação de pessoas e bens, poderia afetar negativamente a população do peñón, levando-a a inclinar-se para Espanha para não perder as vantagens económicas adquiridas com a adesão à UE.

Um “aviso à navegação” no contexto peninsular? Contrariamente ao Reino Unido, que emprega a consulta à população como forma de resolução dos problemas territoriais internos de autodeterminação, como se viu em 2014 no caso da Escócia, a Espanha tem recusado a realização de um referendo para solucionar o problema da Catalunha. A escalada do caso de Gibraltar enfatizaria a rejeição dos métodos anglo-saxónicos na resolução dos problemas espanhóis de autodeterminação.

Uma salvaguarda contra eventual rebelião autonómica? Tendo as potências europeias aceite que as disposições do Brexit só seriam aplicáveis a Gibraltar com o beneplácito de Espanha, é de esperar que semelhante disposição seja exigida por Madrid a Bruxelas no caso de se agravar o processo independentista da Catalunha. Ou seja, na prática, constitui um poderoso precedente para um poder de veto da Moncloa a uma eventual entrada da Catalunha na UE.

O governo britânico respondeu que se encontra “absolutamente firme” no apoio a Gibraltar. De acordo com Boris Johnson, Gibraltar “será protegido com a mesma determinação que as Falkland”, e acrescentou: “manteremos uma resistência implacável, marmórea e sólida como uma pedra”; em alusão certamente ao nome com que o rochedo é chamado na sua terra: The Rock.

A atitude espanhola deixa o nosso país num posicionamento difícil. Aceitar a pretensão espanhola significa resignarmo-nos a uma situação de dois pesos e duas medidas em relação aos territórios contestados: porquê manter congelada Olivença quando Espanha revive Gibraltar?

Significa também um possível esvaziamento da mais antiga aliança diplomática do mundo, o Tratado de Windsor de 1386. Não se pense que por ter 630 anos não está em vigor, foi invocado na I e na II Guerra Mundiais e está na origem da base das Lages nos Açores. E é previsível que venha a ser invocada pelo Reino Unido no caso de Gibraltar. Vimos o trabalho a que se dão os britânicos para defender os seus territórios ultramarinos no caso das Malvinas, que já foi comparado com o de Gibraltar, e há noticias, evidentemente exageradas, mas que comparam as capacidades bélicas navais de Espanha e do Reino Unido.

No entanto, neste caso concreto, não é necessário pensar nesses argumentos para rejeitar a pretensão espanhola. Basta o bom senso de ter em conta os interesses europeus. Manter congelados os conflitos territoriais do continente é condição essencial para a unidade europeia. Que não seja por Olivença, nem por Windsor, basta que seja para evitar reavivar rivalidades territoriais europeias, durante décadas adormecidas, mas não resolvidas.