Quando António José Seguro ganhou as eleições europeias, em 2014, António Costa apressou-se a dizer que a vitória era de Pirro. Percebeu-se, então, que estava em marcha o que depois aconteceu. Rasgou o acordo de Coimbra e lançou-se em asa delta sobre o país. Quem rasga os papéis uma vez, rasga sempre. Esta é a história breve, simpática e sem adjetivos do que aconteceu, desde que o ex-secretário-geral do PS, António José Seguro, deixou o Largo do Rato, a 14 de Setembro de 2014. Desde esse momento, tenho a certeza que muitos terão perguntado por ele, embora alguns o façam, apenas, para o ver longe. Passaram seis anos de silêncio público, dedicou-se à família, ao estudo e à universidade. Conheço-o desde 1987, dos tempos em que a vida política, em Coimbra, tinha relevância nacional sempre que havia eleições para a Associação Académica de Coimbra. Era habitual os líderes das juventudes partidárias acompanharem essas disputas.  Mas hoje quero falar do silêncio, da escolha individual de um homem que dedicou a sua vida a servir o Partido Socialista e o país. Muitos mitigarão esta afirmação, por populismo ou inveja, mas não por indiferença.

Em política, a seriedade e a ética são pilares intemporais que se colam à pele. Em Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, o imperador conta a verdade da sua vida – a que não era oficial – a Marco Aurélio e lembra-lhe que deve praticar a Justiça, tendo em conta, principalmente, os mais vulneráveis. A longa confissão do imperador Adriano foi mais do que a passagem do testemunho, foi o espelho onde Yourcenar ensaiou a transparência da morte e a honradez da palavra. O silêncio de A. J. S. é, também, a metáfora da verdade que não se trai a si própria, quando escolhemos a ética como causa da utopia. Aqueles que se habituaram a mudar de margem com os remos dos outros, aproveitando a força das correntes sem qualquer pudor, pensam que o tempo faz esquecer as traições.

Perguntarão porque se lembram agora de Seguro? Não é possível esquecer aqueles que lutam. O seu silêncio é um “testemunho da consciência”, uma outra forma de continuar a luta entre margens, mesmo que “as águas tudo arrastem” e prevaleça, temporariamente, a cultura do naufrágio. Entramos lentamente na insustentabilidade do seu silêncio, porque inatacável, para se constituir numa ameaça a quem sempre preferiu o ruído. O apelo da sua própria consciência transforma o silêncio na sua voz, ele é a síntese entre a ética e a dignidade, aquilo que Platão chamou o “belo risco”.

Capturados pela corrupção, amanuenses do poder económico, muitos políticos deixaram uma herança de hostilização e um terreno fértil ao populismo. Como o rasto de um cometa, desfizeram-se e esconderam-se, envergonharam o país e os filhos. Por isso, falar de A.J.S. é falar de um cidadão exemplar, de alguém que nos orgulha e comove, que nos dignifica até pela sabedoria do silêncio. Não esperem os feiticeiros de oportunidades, que se ajeitaram no dorso acomodado, renunciando a juras e fidelidades, que haja um Botequim na Lapa para acolher os pregadores do remorso.

O país não pode prescindir de um político que defende que “o exemplo tem de vir de cima, de quem lidera e de quem governa”. Foi isso que, enquanto secretário-geral do Partido Socialista, António José Seguro fez, mas as oligarquias e os direitos adquiridos clamaram por um ciclone para se perpetuarem. Seria impensável muitos dos que conspiraram nas suas costas abandonarem todos os lugares e, principalmente, remeterem-se ao silêncio.  Cada um escreve a sua biografia, porém, nada é mais nefando do que a hipocrisia e a traição. Mas todos sabemos que Alcácer Quibir já não mora aqui. Quanto maior o seu silêncio, mais falta nos faz António José Seguro.

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