Nasci em Matosinhos e vivi sempre em Matosinhos, nas últimas décadas perto das praias de Leça da Palmeira. Passo ali todos os dias e, apesar do farol da Boa Nova, de uma ETAR encantadora e da ocasional cabeça decepada, tinha a sensação permanente de que a paisagem estava incompleta. Faltava, parecia-me, uma obra escultórica arrojada, talvez umas ferragens pintadas de branco e pousadas verticalmente no passeio, alinhadas de modo a que, se cerrássemos muito os olhos ou padecêssemos de uma miopia próxima da cegueira, julgaríamos estar em Manhattan. Já não falta.
Atenta, a câmara local encomendou, por justificável ajuste directo, a obra em causa ao celebrado artista Pedro Cabrita Reis. O sr. Cabrita Reis, vulto anafado que costuma depositar tralha por vários chãos e que teve exposições chamadas “Um Olhar Inquieto” e “Da Luz e do Espaço” (juro), aceitou a encomenda. Melhor ainda, fê-lo a título praticamente gratuito, cobrando apenas o valor simbólico de 300 mil euros, fora 50 mil pelo transporte e instalação. E a câmara, leia-se o munícipe a quem a câmara simpaticamente confisca rendimentos, pagou. Como tudo isto se rege pela absoluta legalidade, não pagou ao sr. Cabrita Reis, mas à Armazém 10, empresa detida pelo sr. Cabrita Reis, por familiares do sr. Cabrita Reis, pelo comentador televisivo António Lobo Xavier e por mais uns portentos avulsos. Em meados de Dezembro, foi inaugurada a “Linha de Mar”, o belíssimo nome das ferragens descarregadas em Leça. Nos finais de Dezembro, a “Linha de Mar” foi vandalizada.
Pela calada da noite (ou do dia, não sei), indivíduos sem escrúpulos nem sensibilidade pintaram nas ferragens as palavras “vergonha”, “os nossos impostos”, “política de merda” e “300 mil euros”. Domingo último, o país acordou chocado, metade pelo acto delinquente, metade pelos preços que os serralheiros praticam hoje em dia. A autarca local, que sinceramente não sei quem é, assinou no Facebook um texto em que defende a “responsabilidade do Estado” no “acesso da classe média e baixa” [sic] à “cultura”. O sr. Cabrita Reis, homem de esquerda, fez uma pausa na contagem das notas subtraídas à ralé para afirmar ao “Público” que o ataque ao “conjunto escultórico” é uma “manifestação provocatória de arruaceiros de extrema-direita”. Certo é que o incidente popularizou a peça e, num ápice, instalou-se a tradicional discussão sobre arte contemporânea, que opõe os filisteus que não a compreendem aos que temem ser tomados por filisteus e fingem compreendê-la.
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