Este ano o Natal chegou mais cedo. Como há 2021 anos, também se fez anunciar. Só que, desta vez, não se tratou do Anjo do Senhor a cantar: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador». Desta feita, o anúncio veio por escrito e chegou à minha inbox às 23.40 do dia 22. Foi quando recebi um mail com o título O Semanário Expresso já está disponível – Edição 2565 em que um dos «destaques a não perder» era: «Gouveia e Melo foi nomeado a Figura do Ano pela redação do Expresso. Em entrevista exclusiva, o vice-Almirante prestes a ser nomeado Chefe da Armada, revela não compreender as dificuldades sentidas no processo de vacinação após ter deixado a liderança da task force. E deixa em aberto a criação de um movimento cívico, revelando não entender o medo que subsiste “em relação aos militares”».

Glória a Deus nas alturas, paz na terra aos homens por Ele amados e graças ao Senhor que este anúncio não foi parar ao spam! Se tivesse ido, ficávamos sem saber que Gouveia e Melo é o Messias. Hosana!

Na entrevista, Gouveia e Melo apresenta-se como uma espécie de Cincinato luso, soldado simples e abnegado que, não desejando largar o arado, pode ser obrigado a fazê-lo para vir liderar. Às tantas, quando lhe perguntam sobre uma hipotética candidatura presidencial, diz: «Pois agora, apesar de não me apetecer nada ser Presidente da República, fiz questão de não deixar para o futuro limitações que possam criar uma ideia de impossibilidade e que menorizam a democracia e os militares com preconceitos do passado».

Mais à frente, perguntam-lhe se se vê a integrar um partido. Gouveia e Melo é peremptório: «Nunca iria integrar partidos, não. Mas como há pouco respondi, a participação política pode existir de muitas formas, até como cidadania pura e simples. A cidadania é uma participação política. Um dia poderia criar, não estou a dizer que vou criar, mas por hipótese, poderia criar um movimento de cidadania ligado a uma área qualquer. É um exercício de política no bom sentido».

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Depois, o entrevistador é mais directo: «Se o convidassem para ministro do Mar aceitava?» Gouveia e Melo não se esconde: «Temos um contributo algures no sistema. O contributo pode ser mais pequeno ou maior. Se me disserem: vai decidir sobre um campo de ténis. Depois, esse campo de ténis está incorporado numa estância com 20 campos de ténis. E perguntam, não gostaria de decidir sobre a estância? Se me derem a estância para decidir, tenho maior margem de liberdade e de ação. E sobre a cidade que gere diversas estâncias? Então tenho maior margem de ação. E sobre o país que tem as diversas cidades? Ainda tenho maior margem de ação…. É preciso ver se temos ou não capacidade para dar um contributo, e se esse contributo está adaptado à dimensão da nossa ação. E se temos capacidade para aumentar esse raio de ação ou não. Se formos convidados para o fazer. Não me estou a predispor para nada. É uma reflexão que teria de fazer…»

A reflexão é rápida, porque a pergunta seguinte é logo: «Sente capacidade para tomar conta do país?». Sem pestanejar, Gouveia e Melo responde: «O país tem pessoas que estão a tomar conta dele. E não tenho nenhuma crítica a essas pessoas. Não tenho aquela ideia demonizada de que o dr. A ou o dr. B é muito capaz ou pouco capaz. Se me disserem: “O sr. agora tem de gerir dois porta-aviões em vez de uma barcoita”, fico a pensar. Será que tenho capacidade para gerir dois porta-aviões? Se a certa altura disser que isto está muito fora do meu nível de decisão e da minha experiência, então não, porque se calhar ia fazer alguma coisa mal feita. Mas se for num âmbito em que a minha capacidade de decisão e a minha experiência possam ser úteis, se calhar dá que pensar».

A ideia que dá é que Gouveia e Melo pensa e reflecte muito sobre estes âmbitos de gerir conjuntos. Sejam campos de ténis, porta-aviões, ou quaisquer coisas que se possam coligir. “Estou a tomar conta do meu neto. Está a correr bem. Já mudei três fraldas e pu-lo na sesta. Será que consigo fazer isto com 2 crianças? E 10? E com todas as crianças do país? Há que reflectir.” Ou: “Já comi um pastel de nata. Soube-me bem. Comia mais outro. Olha, já está. Se calhar, aproveito e acabo a caixa. Pumba, seis à vida. Conseguirei comer outra meia-dúzia? Dá que pensar”.

Gouveia e Melo gosta tanto de agrupar que coleciona estas metáforas em que vários elementos ocupam o lugar dos portugueses, que é quem ele deseja mesmo dirigir. Gouveia e Melo já liderou os portugueses que cabem num submarino, os portugueses que cabem em todos os submarinos, agora os portugueses que cabem em todos os navios. É só um passo até liderar todos os portugueses de Lisboa, depois todos os da Extremadura, até todos os do país.

Para comandante de submarinos, a arma de guerra mais dissimulada que há, Gouveia e Melo é pouco discreto sobre o seu objectivo. É como andar em patrulha com o periscópio de fora. Falta subtileza ao Snu Tzu do Alfeite. O único efeito surpresa que causou é que é surpreendente que seja tão óbvio. De um militar treinado para passar despercebido esperava-se maior domínio da camuflagem. Gouveia e Melo acha que está a disfarçar a sua ambição, mas está com ela toda à mostra. Como estratego militar, revela a o seu plano com alguma ingenuidade. Pior que Gouveia e Melo a disfarçar que quer ser Presidente, só as 738 vezes em que Marcelo jurou que não queria ser Presidente.

A dada altura, com amargura, Gouveia e Melo queixa-se de haver um preconceito contra militares assumirem papéis na vida política. É o momento Gouveia e Melodrama. O vice-almirante diz não entender o trauma que os civis têm com os militares. Vê-se bem que ele não entende. Se entendesse, não tinha esta conversa. Uma das razões para os civis terem um trauma com os militares é, justamente, a dificuldade de os militares entenderem o trauma dos civis com eles.

Quando lhe perguntam se sente capacidade para «tomar conta do país» e ele concede que «o país tem pessoas que estão a tomar conta dele», a ideia que dá é que os militares deixam os civis brincar à governação, mas estão atentos. Se virem que estamos a escangalhar, tiram-nos o brinquedo. Como um pai que empresta o carro ao filho para levar a namorada a passear, mas pespega-se no lugar do morto, para se certificar que o rapaz pressiona correctamente a embraiagem. O «tomar conta do país» revela bem a tutela que os militares julgam que exercem sobre o poder. O facto de Gouveia e Melo deixar subentendido que tem capacidade para tomar conta do país, mas vai deixar-se ficar quieto, pois por enquanto não é preciso, é razão para nos sentirmos desconfortáveis quando ouvimos alguém cantar «Os marinheiros aventureiros são sempre os primeiros na terra ou no mar». Menos a Tonicha, que vai muito bem.

Gouveia e Melo ouviu tantos elogios, recebeu tantos prémios, foi tantas vezes considerado o homem do ano, que começou a achar-se mesmo especial. Acontece. Mas é estranho que uma pessoa que passou tanto tempo no mar seja tão influenciável pelo embalo. A vacinação correu muito bem, é um facto, mas Gouveia e Melo ficou convencido de que isso chega para continuar a dar-nos pica. Apesar de tudo, é preciso não esquecer que se trata da logística de transporte e aprovisionamento de vacinas e da organização de barracões onde se emparelham essas vacinas com pessoas que querem muito, muito tomá-las. Mal comparado, é como dizer que Zé Fuinha, o maior dealer do Casal Ventoso, organiza muito bem a distribuição de heroína. Ao vice-almirante bastou dominar o Excel e não ser um incompetente apparatchik partidário.

É que o problema de Gouveia e Melo é o seu bom trabalho na vacinação ter vindo logo a seguir ao péssimo trabalho do boy do PS que lá estava, e mesmo antes do péssimo trabalho da comissária política que lá está agora, que já nos fez descer do ranking dos que mais vacinam com a 3ª dose. Essas duas figuras fizeram-no brilhar. Se, numa campanha presidencial, Gouveia e Melo quiser tirar proveito da fama de vacinador-mor, no boletim de voto a sua fotografia terá de vir entre a de Francisco Ramos e a de Graça Freitas.