A culpa foi da “companheira”. Estava eu a alinhar um texto sobre a ignorância granítica subjacente às afirmações de uma professora de Português na Universidade de Massachusetts Dartmouth a propósito do que designa como racismo em “Os Maias” quando me caem os olhos na notícia sobre o novo guião da Universidade de Manchester que impede os funcionários e professores daquela universidade de usarem termos como mãe e pai, idosos, pensionistas, jovens e mulher/marido por companheira/companheiro. Desculpem-me mas companheiro e companheira é que não!
É certo que no Guia de Comunicação Inclusiva da UE já se tinha posto o casamento ao nível do jogo da bisca com a recomendação de que se usasse “parceiro/parceira” em vez de “marido/mulher“. Mas esta coisa folclórica dos companheiros e das companheiras é um outro nível neste nosso caminho para a bruteza.
Já sei que vão argumentar os leitores que proibir termos como mãe e pai é muito mais grave. Pois claro que é. Mas uma pessoa tem destas fraquezas: o ridículo pode às vezes mais que a reflexão. No meu caso essa terminologia dos companheiros e das companheiras produz-me uma vontade irreprimível de dar àquele palavreado melífluo e beato da igualdade e da inclusão o mesmo trato que Carlos da Maia proporcionou às angelicais vestes do Eusebiozinho (os neo-inquisidores não querem também fazer um alerta sobre o bullying em “Os Maias”?)
O recente livro de estilo da Universidade de Manchester é apenas mais um entre os muitos documentos que procuram condicionar ideologicamente a forma como referimos a família, os outros e o mundo. Esse condicionamento não é uma questão de mau gosto, excentricidade ou maluqueira mas sim uma utilização da linguagem com um objectivo: impor através do controlo da expressão verbal modelos de sociedade que rejeitamos.
Os homens e mulheres que se tornavam maridos e mulheres saem destes guiões de linguagem dita inclusiva transfigurados em pessoas que ao relacionarem-se tornam-se parceiros/as, companheiros/as ou cônjuges que podem ou não tornar-se progenitores. A neutralidade da linguagem não inclui ninguém mas desumaniza-nos a todos!
Estes guiões de linguagem apresentada como igualitária e inclusiva estão a transformar as nossas vidas numa versão daqueles pesadelos em que gritamos por ajuda mas não conseguimos articular qualquer som: eles proíbem-nos as palavras que nomeavam o nosso mundo.
O que estamos a viver é-nos invariavelmente apresentado como um item obrigatório na nossa caminhada para um futuro libertador. Nada mais falso: não só não há nisto libertação alguma como nos estamos a aproximar cada vez mais dos métodos do despotismo revolucionário dos jacobinos no século XVIII. Estes, para libertarem a sociedade francesa de então daquilo que consideravam o seu maior crime – o catolicismo –, substituíram o calendário gregoriano por um excêntrico calendário revolucionário: o ano começava a 22 de Setembro, cada dia tinha dez horas e cada semana dez dias. Verificar se os franceses sobretudo os camponeses ainda usavam o velho e reaccionário calendário para determinar a quantos estavam no 10 do Vindimário ou no 14 do Pluvioso tornou-se uma obsessão dos fervorosos libertadores.
A linguagem inclusiva do século XXI é um sinal de despotismo da mesma natureza que o calendário revolucionário do século XVIII: impõe-se uma nova ordem através da substituição do que nos permite orientarmo-nos. A desorientação, seja ela não se saber em que dia se está ou como nomear alguém, não é casual. É propositada e instrumental.
Como e porquê políticos de centro direita e centro esquerda pactuaram com isto, atraiçoando os seus eleitorados? Ou melhor dizendo porque pactuaram com este processo de subversão quando ainda era possível fazer-lhe frente sem que isso implicasse levar as nossas sociedades para clivagens desgastantes?
Não me parece normal que não o tenham feito em devido tempo e menos normal me parece o fatalismo com que se aceita esta tirania. O que é afinal, se não um claro sintoma dessa rendição, a forma como pressurosamente se desatou a discutir a necessidade de contexto para “Os Maias” só porque uma criatura que não distingue os manifestos políticos da literatura e da arte soltou a palavra racismo? (Já agora a alba escrita por dom Dinis “Levantou-s’a velida,/levantou-s’alva,/e vai lavar camisas/ eno alto, /vai-las lavar alva” cai no espectro da supremacia branca? Ou será que estamos perante um caso de literatura trans pois à semelhança do que acontece nas chamadas cantigas de amigo, o autor, homem, escreve como se fosse mulher?)
Para usar a terminologia destes guias da inclusão,as sociedades do nosso tempo não sofrem, vivem com. Dizem estes guias que não devemos usar expressões como sofrer de cancro mas sim viver com o cancro. É isso mesmo: nós sofremos o cancro do despotismo. Mas não o devemos referir. Nós vivemos com ele e interiorizámo-lo de tal modo que lhe chamamos libertação.
Ps. É espantoso o silêncio em torno da violentíssima agressão ao fotógrafo Christian Lantenois. Este repórter fotográfico foi barbaramente agredido quando se deslocou ao que se convencionou chamar “bairro sensível” de Reims, mais precisamente o bairro da Cruz Vermelha. Christian Lantenois acompanhava uma colega jornalista que tinha ido fazer uma reportagem sobre as rixas que estavam a acontecer naquele bairro. Sinal dos tempos, não se aproximaram muito mas eis que Christian Lantenois foi identificado: a máquina fotográfica não deixava dúvidas sobre a sua profissão. De imediato foi cercado e agredido. Ficou entre a vida e a morte. Em França fizeram-se as declarações indignadas do costume, repetiu-se “não temos medo” (cada vez têm mais), pronuncia-se o termo asselvajamento para explicar o que está a acontecer no país e pergunta-se como é possível que um dos agressores, argelino, tenha podido permanecer em França apesar da documentação irregular e de acumular condenações nos tribunais. Por cá preferiu-se olhar para o lado.