O que se passa na China com a nova vaga de coronavírus, o que se passa na Rússia, onde uma parte significativa dos militares são mercenários, muitos são recrutados nos confins do território e todos os dias a comunicação social oficial propagandeia as versões mais absurdas sobre o mundo Ocidental, e o que se passa nos corajosos protestos no Irão provam todos a mesma coisa: o povo, mesmo nas ditaduras, conta. E quer liberdade.

A China tinha decidido impor uma política de Covid zero a qualquer custo. Fê-lo, durante vários meses, e isso saiu-lhe extraordinariamente caro. Nos últimos tempos, várias cidades e regiões na China estiveram submetidas a um confinamento brutal. As primeiras imagens que circularam nos media ocidentais e nas redes sociais pareciam tão inverosímeis que qualquer pessoa cautelosa suspeitava da sua veracidade. Mas quando um incêndio fatal num prédio de habitação em Urumqi, a capital da província de Xinjiang, espoletou manifestações de protesto em várias cidades da China, percebeu-se que era verdade, que a política de Covid zero era imposta com enorme violência (efectiva ou ameaçada) e era rejeitada por uma parte significativa da população.

As manifestações populares que, como em todos os regimes autoritários, implicaram imensa coragem dos participantes, mostraram um país capaz de protestar. Pouco depois da entronização de Xi Jinping, a liderança do Partido Comunista Chinês descobria que tinha de ceder perante o risco de instabilidade social. Pior ainda porque tudo começara na província onde a China viola os direitos humanos da população uigur.

No Irão já tinha havido protestos nos últimos anos, mas nunca uma coisa assim. Há mais de cem dias, com maior ou menor intensidade, o regime dos ayatollahs tem sido confrontado com a coragem das mulheres e a solidariedade de muitos homens (uns mais novos, mas alguns mais velhos, também). Tudo começou pelo direito das mulheres a não usarem o hijab, mas é evidente que o que se passa actualmente vai muito mais longe, vai ao essencial do regime. O poder teocrático está a ser desafiado. Se perder no tema do vestuário das mulheres, perde a sua autoridade em geral. E os líderes iranianos sabem isso.

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Na Rússia, desde o início que Putin tentou evitar que os russos sentissem, conhecessem ou protestassem pelo preço da guerra. Apesar do simulacro de democracia eleitoral, o regime não permite protestos, oposição ou imprensa livre. O que tem sido razoavelmente fácil de impor e manter. Mas as reacções às sanções e aos mortos são mais difíceis de impedir. Como Moscovo se lembra, do tempo da União Soviética e do seu desastre militar no Afeganistão. Por isso é que Putin tenta fazer a guerra com mercenários do grupo Wagner, criminosos condenados e recrutas dos lugares mais remotos da Federação Russa. Tanto quanto possa, e enquanto puder, Putin tentará que os russos não sintam que estão em guerra. Não vão eles perguntar-se porque razão o fazem. Para espanto de alguns comentadores ocidentais, é muito provável que muitos russos não considerem a Ucrânia sua nem a NATO uma ameaça.

Todos estes casos são obviamente diferentes entre si, mas todos contam uma mesma história. O maior medo dos ditadores é que o povo deixe de ter medo. E têm razão. Os povos podem não se manifestar por ideias ou valores abstratos, pode ser por causa da economia, da guerra ou dos mortos, mas aquilo que pedem implica sempre liberdade. É sempre o valor fundamental. E, por muito, que alguns ocidentais gostem de criticar o Ocidente, a liberdade é a nossa condição essencial. É por isso que não há democracias iliberais. Não há democracias sem liberdade.

Depois do entusiasmo entre o final do século passado e o início deste, há alguns anos que a ideia de promoção da democracia perdeu adeptos. A opinião generalizada é agora que não nos cabe impor, estimular ou mesmo promover transformações democráticas. Quando se tentou, correu mal, diz a história recente.

É verdade que nem todos os nossos aliados são democracias recomendáveis, mas olhando precisamente para a China, para a Rússia ou para o Irão, é evidente que os nossos adversários são todos regimes autoritários onde não há liberdade. E, como no passado, os povos destes países são os nossos maiores aliados.

Pode ser que sim, que tentar espalhar a democracia não seja uma boa ideia. Mas é de democracias que precisamos. E quanto mais liberais, melhor.

No tempo da Guerra Fria também parecia impossível. E, no entanto, quando a União Soviética caiu, uma onda democrática varreu o mundo. E isso foi bom.

Há ainda mais duas coisas que as imensas mortes por coronavírus na China provam (para quem ainda precisava de sinais): a covid mata e as vacinas (as ocidentais) fazem diferença. E mais uma, ainda: é falso que os regimes autoritários lidem melhor com crises.