Se há algo com que seguramente já nos conformámos, sob pena de sofrermos de grave depressão, é a baixa qualidade dos nossos serviços públicos. Recentemente, Carlos Miguel, Secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, terá afirmado, e citamos, que “a Administração Central tem urdido uma teia de pareceres vinculativos que tudo emperra, trava, demora, chateia, na maior parte das vezes para satisfazer pequenos poderes instituídos”. É uma afirmação que só não subscreverá, quem nunca privou com a administração central e já agora, também com a local, para requerer o que quer que seja, que necessite de um parecer ou de um despacho. A novidade não é a mensagem, mas desta vez é, de facto, o mensageiro: foi proferida publicamente por um membro do Governo em exercício de funções, circunstância que torna o teor da afirmação quase inédita.
Não existe qualquer explicação racional e fugazmente aceitável para a panóplia tutelar e regulamentar para tudo e mais alguma coisa em que o Estado tem de decidir, envolvendo milhares de técnicos e centenas de organismos a consultar, a opinar, a intervir, que tudo atrasa, tudo complica e torna mais dispendioso. Não se vislumbra outro objectivo para tal alucinação regulamentar, que não seja o de justificar a subsistência de cargos directivos e empregos públicos, muitos dos quais inteiramente desnecessários, por clara duplicação de poderes e funções. A não ser que essa profusão de normas e regulamentos seja para ter o efeito de nevoeiro, no qual só podem navegar seguramente os eleitos que possuam o GPS dos interesses instalados.
Mas, se quanto às medidas para superar esse constrangimento, numa parte do seu raciocínio, Carlos Miguel acerta quando propõe a eliminação de estruturas intermédias inúteis, peca por omissão quando deixa de referir outro factor fundamental para a lentidão dos serviços públicos e isso tem uma causa: a falta de produtividade na administração central e local.
Compreende-se que os políticos em plena actividade precisem de votos e, por conseguinte, é-lhes sempre mais prudente questionar as regras e as instituições como um todo, que apontar o dedo aos funcionários, que são uma fatia importante dos seus eleitores. Mais uma razão, para que quem não tencione submeter-se a votos, possa referir isso sem constrangimentos.
Há, de facto – é tão notório que não carece de mais explicações -, um enorme problema de produtividade na função pública, sobretudo no âmbito das funções chamadas de back office, bem como ao nível dos quadros técnicos do Estado. Não estamos a referir-nos a assistentes operacionais e similares, que simplesmente executam o que lhes ordenam, ganham mal e cumprem o horário. É bom que isto fique bem claro.
O exemplo que é citado por Carlos Miguel é o caso de um projecto apresentado à administração já acompanhado de um parecer dum técnico credenciado, ter de ser revisto, apesar disso, por um outro técnico da administração central ou local com as mesmas qualificações. Pode ser discutível, caso a caso, em que situações se justifica ou não essa revisão, ou, sequer, essa necessidade. Mas Carlos Miguel diz mais alguma coisa muito importante: o técnico do Estado com habilitação igual à do autor do projecto demorará meses a dar parecer.
E é esta a situação que nos leva a questionar qual – além da paranoia regulamentar – a outra causa das entropias. Porque é que um técnico do Estado demora meses a avaliar um projecto de construção, quando o autor do mesmo demorou algumas semanas para o elaborar?
Porque é que um simples requerimento ou parecer jurídico é elaborado por um jurista de qualquer escritório grande ou pequeno, por exemplo, em duas semanas e quando chega à administração pública para apreciação, outro jurista, com as mesmas habilitações, demora largos meses para produzir a sua apreciação?
Tivemos há muito poucos anos um exemplo flagrante como a baixa produtividade pouco tem a ver com qualquer acumulação de trabalho ou falta de recursos.
No chamado período da Troika, os municípios quase deixaram de receber pedidos de licenciamento de obras. Onde recebiam, por exemplo, cem pedidos por mês, passaram a receber dez. O tempo médio para resposta e despacho de um pedido nas condições anteriores era, por hipótese, de 6 meses. Agora, durante o período em que só receberam dez, advinham qual foi o tempo de resposta? Os mesmos 6 meses. Durante o período da Troika, muitas empresas reduziram pessoal, mas na administração central e local, que se saiba, ninguém foi despedido nem teve salários em atraso. Explicação para esta inércia simplesmente não há, a não ser a pura e simples falta de profissionalismo de quem não depende do trabalho produzido para assegurar o seu rendimento.
O Simplex acaba por ser, ao fim ao cabo, uma prova do que vimos dizendo: funciona, porque correndo em ambiente automático, quase não exige a participação dos funcionários.
Utilizar-se o enorme esforço dos trabalhadores da linha da frente na saúde como argumento para negar esta realidade, só serve para tapar o sol com a peneira. Esse sector, na parte operacional, sempre foi produtivo e mais ainda em situação pandémica. Mas os trabalhadores da linha da frente da saúde são apenas uma pequena parte do funcionalismo público.
Já experimentaram telefonar para um qualquer serviço público corrente, que não seja de urgência? Atenderam-no? O mais provável é que não. Será porque estão em teletrabalho? Mas se isso fosse impeditivo do atendimento, o país teria absolutamente parado, pois o pessoal de atendimento em tudo o que são fábricas, bancos, seguros, retalho, jornais, rádios etc., também está em teletrabalho há muitos meses.
O artigo 287º da nossa Constituição estabelece que a Administração Pública “será estruturada de modo a evitar a burocratização, a aproximar os serviços das populações e a assegurar a participação dos interessados na sua gestão efectiva“. A Constituição é de 1976. Daria vontade de sorrir, se não fosse um assunto sério.