1 A primeira pessoa que me disse, em 2016, que Donald Trump podia ganhar as eleições foi um historiador inglês, Timothy Garton Ash. Ele tinha feito campanha contra o Brexit nos bairros pobres da sua cidade universitária, Oxford, e percebera que havia um eleitorado que “já não reconhecia o seu próprio país”. Semanas depois, nas ruínas do que fora a “cintura da ferrugem” da Pensilvânia, encontrei o mesmo tipo de eleitores desencantados. Depois de passar um dia com eles não foi difícil perceber como estavam disponíveis para acolher o discurso do então candidato republicano.
Pela mesma razão não fiquei surpreendido quando, em 2019, vi o Chega eleger o seu primeiro deputado e conseguir as suas melhores votações nos subúrbios de Lisboa, em bairros onde vive a classe média baixa e baixa. Mas sabia uma coisa: da mesma forma que Boris Jonhson nunca foi um Donald Trump, André Ventura é um produto tipicamente português que tem de ser lido à luz da nossa realidade e da sua história pessoal. As simplificações que impedem de pensar – Boris e Trump são os dois louros, só podem ser os dois burros ou loucos… – não ajudam a compreender a ascensão fulgurante de André Ventura e impedem-nos de ver o mais importante. E o mais importante é, neste exacto momento, a imensidão de portugueses que, para usar uma expressão recentemente usada pelo Presidente da República, não viaja na 1ª classe, nem na 2ª, nem na 3ª, mas sim no porão.
André Ventura é o político que percebeu que podia ter uma oportunidade se falasse para essa parte do país de que ninguém fala, uma parte do país com muitas preocupações pouco presentes nos órgãos de informação e ainda menos presentes nos debates políticos.
Só que os que estão no porão não são apenas os “excluídos” para os quais de vez em quando os nossos responsáveis dirigem umas palavras. Os que estão no porão são os que não têm voz, são os invisíveis, são aqueles que muitas vezes nem sabemos que existem e que, em eleições, nem costumam aparecer para votar.
André Ventura é o político que percebeu que podia ter uma oportunidade se falasse para essa parte do país de que ninguém fala, uma parte do país com muitas preocupações pouco presentes nos órgãos de informação e ainda menos presentes nos debates políticos. E que para o fazer – e fazer-se ouvir – tinha de romper todas as convenções estabelecidas.
2 Há sensivelmente um ano procurei explicar porque é que, em poucos meses, o Chega já aparecia destacado nas sondagens (hoje aparece muito mais) e porque é que, sobretudo nos subúrbios de Lisboa e em algumas partes do Alentejo, se os pais ainda votavam comunista, os filhos já votavam Chega. Hoje suspeito que muitos desses pais também já votariam Chega se o pudessem fazer.
Obviamente que isto não sucede porque há sempre um salazarista escondido nas profundezas da alma dos portugueses. Isso sucede porque um político começou a dizer não apenas o que muitas pessoas pensavam, mas o que pensavam e não se atreviam a dizer alto. “Quando o oiço, oiço-me a mim”, terá referido um militante do partido citado no livro de Riccardo Marchi sobre o Chega, traduzindo um tipo de simbiose que é o segredo dos líderes populistas.
Se procurarmos perceber melhor o personagem – e o político –, então é necessário ir até ao subúrbio onde nasceu e cresceu: Algueirão/Mem Martins, no concelho de Sintra.
No caso de André Ventura o estereótipo político-mediático definiu-o a partir das suas provocações – e crismou-o de imediato como um xenófobo infrequentável. Mas se procurarmos perceber melhor o personagem – e o político –, então é necessário ir até ao subúrbio onde nasceu e cresceu: Algueirão/Mem Martins, no concelho de Sintra. Um subúrbio que por circunstâncias várias conheço relativamente bem, e por conhecer bem compreendo como a sua formação é marcada, na dimensão social, “pela vivência problemática de um grande subúrbio metropolitano, uma amálgama de pessoas de diferentes etnias, de classe social média-baixa e baixa, numa selva de prédios, muitos deles degradados”.
É por isso que ele primeiro procura uma direita popular e não classista, é por isso que depois dará sempre prioridade a temas como a segurança e também por isso que não se exime a tocar no tema tabu do ciganos: ele sabe que entre as classes baixas trabalhadores e esforçadas o assistencialismo é mal visto. Conhece esse mundo. É nessa mesma linha que tanto critica o comportamento de certas comunidades ciganas como os excessos de Rabo de Peixe, nos Açores.
Quando olho para o percurso realizado por André Ventura e pelo Chega no último ano não posso deixar de verificar que a sua estratégia de se apresentar como único partido anti-sistema está a resultar – o que é tanto ou mais extraordinário pois acabámos de viver meses de quase “união nacional” por causa da pandemia. Mais: o que surpreende quando Ventura é muitas vezes errático, contraditório, não raras vezes muda de posição, o seu programa político é difícil de entender e o partido já passou por várias crises. Mas nada disso parece atrapalhá-lo – ou atrapalhar a sua progressão.
De novo é preciso perceber o homem dos subúrbios que começou a procurar a notoriedade através de um programa desportivo, ele a quem os colegas de escola ou faculdade nem sequer conheciam grandes paixões clubísticas. O fito, desde o início, era outro: ganhar notoriedade. O mesmo se passa com muitas das suas tiradas bombásticas que provocam indignações em catadupa: nada importa porque Ventura quer sobretudo que se fale dele.
3 No meio disto tudo, o que é realmente o Chega? O partido nasce indiscutivelmente direita, mas não nasce como um projecto ideológico da direita dura – não por acaso André Ventura filia-se primeiro no PSD, onde começa por ser candidato autárquico e onde chega a pensar que pode disputar a liderança a Rui Rio. Depois, quando decide arrancar com o Chega, a primeira tensão é entre duas alas, uma mais assumidamente ideológica e nacionalista, protagonizada pelo advogado Jorge Castela, e outra dita mais “social-democrata”. A ala mais ideológica e mais extremista acabaria por sair do partido ainda antes de este tomar forma.
O Chega é André Ventura e as suas intuições, muito marcadas pelo seu percurso pessoal – os temas da segurança, a corrupção, a comunidade cigana – e pelas provocações destinadas a garantir que está permanentemente nas notícias.
Este percurso é interessante e sintomático: ao contrário de outras formações da direita radical europeia, o Chega não nasce como um projecto ideológico puro e duro e, sobretudo, não nasce encostado à tradição nacionalista. O Chega é André Ventura e as suas intuições, muito marcadas pelo seu percurso pessoal – os temas da segurança, a corrupção, a comunidade cigana – e pelas provocações destinadas a garantir que está permanentemente nas notícias. A sua preocupação não é a coerência, pelo contrário, e se votou de três formas diferentes (contra, abstendo-se e a favor) a proposta do Bloco de suspender o pagamento do Fundo de Resolução ao Novo Banco, é pouco provável que com isso tenha perdido muitos votos.
4 Se formos rigorosos, em muitas frentes André Ventura não faz nada que já não tenha sido feito por outros. Ataques à comunidade cigana por causa do rendimento mínimo? Basta recordar Paulo Portas em 2002. Só que Portas vinha das boas famílias de Lisboa e o CDS era já uma velho partido com pergaminhos. Fundar uma IV República? Alberto João Jardim há muitos anos que defende o mesmo, mas se o desconsiderarmos como figura algo folclórica, então é bom recordar que Rui Rio se apresentou como candidato à liderança do PSD dizendo que “precisamos de um novo 25 de Abril” e que a Constituição de 1976 estava velha. É capaz de não ser menos revolucionário. E algumas das propostas do Chega – que eu abertamente repudio –, como a castração química ou a prisão perpétua, são prática comum em muitos países europeus.
E depois será possível continuar a dizer que não, não há nenhum problema com a comunidade cigana quando no mais recente Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, publicado em 2015, se refere que a idade média do casamento das raparigas é aos 16 anos, sendo que mais de 15% casam com menos de 15 anos e que mais de 80% assumem casar pela “lei cigana”?
Mas não, a realidade não interessa e por isso há por aí muita gente a achar que com Ventura vem aí o fascismo e, por isso, pedem a rápida ilegalização do partido pelo Tribunal Constitucional. A estupidez é evidente e só mostra a tacanhez de certos espíritos. Só falta mesmo sugerirem que prendam André Ventura para o impedirem de falar – pior do que um demagogo, só um demagogo mártir.
Ninguém deveria surpreender-se por Ventura e o Chega ocuparem o vazio da revolta inorgânica anti-elites, sobretudo quando exploram ressentimentos e preconceitos
5 De facto a pior cegueira é mesmo a de quem não quer ver – e o que toda essa gente não quer ver é que André Ventura está a falar para portugueses a quem partidos tradicionais deixaram de dar respostas. Portugueses que ou tinham deixado de votar – há anos que alerto para o potencial de dissensão que deveria estar escondido nos nossos elevados níveis de abstenção – ou votavam noutros partidos de protesto, como o PCP, que sofreu uma enorme sangria nas três últimas eleições e era, até à geringonça, a principal barreira ao crescimento da revolta inorgânica anti-elites. Ninguém deveria pois surpreender-se que Ventura e o Chega ocupassem esse vazio – ou alguém duvida que também em Portugal há sobejas razões para uma revolta anti-elites, sobretudo quando alguém explora ressentimentos e preconceitos?
E aquilo que também ninguém quer ver (ou ninguém quer assumir) é que pouco contará catalogar o Chega como de “extrema-direita” pois ele já ocupou sociologicamente outro lugar – e ao ocupar outro lugar “desarranjou” de alguma forma o quadro partidário existente, tirando peso à esquerda. Pior: fá-lo competindo pelo mesmo eleitorado popular de parte dessa esquerda.
Por isso não devia ter havido qualquer surpresa com o que aconteceu nos Açores. No tal artigo de há um ano eu já previa “maiorias plurais” à direita, só não imaginava que elas viriam tão cedo. É caso para dizer: habituem-se e, sobretudo, trabalhem melhor, pois não será nos tribunais que derrotarão o Chega.
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