Até ao período eleitoral, a ausência de política na política portuguesa foi gritante. Esta coluna descreveu-a ao analisar o PAN e o seu eleitorado apolítico (“A política sem política“) e o fenómeno detectou-se noutras esferas. Em resposta a uma entrevista conjunta de Marcelo Rebelo de Sousa e Eduardo Ferro Rodrigues ao Expresso, Sérgio Sousa Pinto foi mais longe no diagnóstico. Sobre a coligação fotográfica entre o Presidente da República e o Presidente da Assembleia, escreveu: “O reconhecimento honesto de que tanto os une e tão pouco os separa traz consigo uma hipótese avassaladora: a de que o regime, como um balão se esvazia de ar, se esvaziou de política”. E é verdade.

A uniformização do discurso político tornou a incumbência no maior, senão no único, fator de distinção entre partidos. As diferenças estruturais, atualmente, já não estão no que implementam, mas na sua circunstância de exercício ou não exercício de poder. Assistimos a isso na frente financeira, com a trajetória do défice a ser felizmente mantida entre os executivos do PSD e do PS, e na frente institucional, com o retrato da amizade entre Marcelo e Ferro Rodrigues como simbólico apogeu.

Nas vésperas eleitorais, se a memória não me falha, as velhas fronteiras entre esquerda e direita foram pontualmente acesas com a discussão de casas-de-banho para transsexuais, com a polémica em torno de um museu em Santa Comba Dão e com a acusação do Ministério Público a Azeredo Lopes. À exceção dos casos enumerados, a discórdia foi discreta. Tornou-se difícil para esquerda, depois de aprovar quatro Orçamentos com metas de Bruxelas, manter uma retórica de crítica eurocética ao governo. E tornou-se difícil para a direita, depois do sucesso de Centeno nas Finanças, conseguir um discurso de oposição orçamental ao Partido Socialista.

No fim do dia, todos, de uma ponta à outra do hemiciclo, defenderam “as contas certas”. E foi precisamente devido a essa mimética que assistimos ao regresso dos polarizadores. Depois de um tempo de relativo consenso financeiro – em que até o Bloco foi social-democrata –, a uniformização obrigou à busca da diversificação. Assistimos a isso na esquerda, com a chegada das campanhas identitárias e em torno da raça, e à direita, com um combate mais cerrado à ideologia de género. O sucesso do Livre, com Joacine Katar Moreira, e do Chega, com André Ventura, são provas concretas desse regresso dos polarizadores. O protagonismo que a eutanásia assumirá na agenda deste início de legislatura corresponde à mesma tentativa de preencher algo em risco de vácuo: a política.

Era previsível que, depois do regime sofrer esse esvaziamento, como contemplou Sousa Pinto, se seguisse uma batalha cultural. Com efeito, a democracia tem mais a ver com esse debate do que com andarmos a repetirmo-nos uns aos outros. Mas o posicionamento dos partidos que fundaram a República, perante esta nova polarização, exigirá uma imensa responsabilidade.

Não creio que a tenham.

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