A Senhora Ministra da Saúde teve a infelicidade de usar, mal, uma expressão que está na moda para invocar uma característica, a resiliência, que seria necessário considerar no processo de contratação de médicos para serviços de urgência, presume-se. Foi isso que disse – “outros aspetos como a resiliência são aspetos tão importantes como a sua competência técnica”. E é verdade, ainda que os profissionais de saúde sejam naturalmente resilientes. O problema é que esta frase foi interpretada como sendo a rotulação dos médicos, todos e em geral, como pouco resilientes. Também parece evidente – eu li e reli a transcrição, dei-me ao trabalho de ver a gravação do momento – que a insinuação estava lá e não deveria ter estado. Estou certo de que a Dra. Marta Temido teve este deslize sem pensar nas consequências do que estava a dizer, nada de invulgar em comunicação, e não pretendia ofender ninguém. Pediu desculpa, não precisava de o ter feito, mas até aí a coisa saiu-lhe menos bem. Há dias lixados.

A frase da Senhora Ministra que lhe ficará colada para quando der jeito a quem a quiser atacar, a exemplo da audição da Internacional e da suposta cobardia dos médicos a que o Dr. António Costa uma vez aludiu, até merece uma reflexão bem mais interessante do que ser simplesmente qualificada de “inqualificável”. Um dia, com calma, será importante revisitar o modelo de seleção e contratação de pessoal de saúde. Mas esse dia não é agora, com as faltas que todos sentimos e em que tudo o que vem à rede é peixe. E bom pescado, entenda-se.

Ser profissional de saúde, em Portugal e em quase todo o mundo, exige um enorme esforço no acesso à formação, ainda pior para os que pretendem aceder ao ensino universitário. Depois, estando lá, muitas vezes com sacrifício familiar e pessoal, defrontam-se com cursos longos e difíceis, muitas vezes dispendiosos. Já habilitados, os profissionais de saúde sujeitam-se a processos de formação continuada que nunca para e muitas vezes pagos pelos próprios. Trabalham longas horas, quase sempre com turnos noturnos e também envolvendo dias que são de descanso para a maioria das pessoas. Aturam o impensável. Correm riscos de todo o tipo. São geralmente mal pagos, pese embora a ideia falsa de que os médicos são milionários. Nas outras profissões da saúde, a penúria de rendimentos é quase universalmente reconhecida. Logo, exigir resiliência como critério de seleção, havendo outros bem mais importantes, é descabido. A resiliência está lá, pode é não ser sempre a mais adequada, direcionada para a função pretendida, demonstrada da melhor forma.

A frase é ainda mais desajustada quando não temos de forma generalizada equipas de urgência específicas e dedicadas só a essa função. Os hospitais andam desesperados à procura de quem queira fazer horas de trabalho nas urgências e horas extraordinárias em qualquer lugar do SNS. Imaginem se ainda fosse preciso uma avaliação psicológica sistemática nos tempos que correm. No calor da discussão, falou de mais. Acontece, já me aconteceu.

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Há outra discussão, interessante e bem mais útil, que pode resultar da análise da frase da Senhora Ministra e que, estou certo, a ela tocará. A exigência de resiliência é ainda maior para as mulheres profissionais do que para os homens. É verdade que hoje, não por acaso, a gravidez passou a doença e quase todas as grávidas passaram a ser de risco, com a baixa consequente. Mas também é verdade que ainda estamos longe do desejável em termos de apoios à maternidade e isso é particularmente duro para as mulheres que trabalham em instituições de saúde. Quantas creches existem especificamente para servir as famílias dos trabalhadores do SNS? Quantos hospitais têm uma creche? Quantas escolas começam a receber crianças a partir das 7h da manhã? Sei, por ter passado por isso, como é difícil ter crianças quando ambos os membros do casal fazem serviço de noite, a chegarem tarde a casa porque o sustento tinha e tem de ser ganho com mais do que um emprego, a ter de estar às 8h no hospital, hora a que todos deveriam começar a trabalhar. Exigir ainda mais resiliência às mulheres, aos pais e mães, que trabalham no SNS é violento. Pior ainda quando o SNS é cada vez mais tripulado por jovens que olham para si e para o mundo com olhos bem diferentes dos que eu tive quando comecei a ser médico, aos 24 anos de idade. E não estou a dizer que os mais jovens de hoje estejam errados quando olham para a sua vida, o seu direito ao lazer e a serem pessoas mais completas do que simples escravos da profissão. Exigir mais e dar menos é dramático quando há competição internacional pelos recursos humanos de saúde.

E daqui surge mais uma conversa adiada, a que se prende com a feminização das profissões da saúde. No caso das licenciaturas, em especial das de médicos e enfermeiros, embora no caso da enfermagem existam razões históricas, o número de mulheres tende a suplantar o dos homens. Num momento em que faltam enfermeiros e médicos, sendo desejável que a natalidade aumente e natural que as famílias queiram ter filhos, os tempos de ausência resultantes da gravidez e maternidade tenderão a ser proporcionalmente mais disruptivos do que já são. A conflitualidade entre trabalho e família é maior para as mulheres e a pandemia de COVID-19 acentuou esse facto, como se mostra neste estudo. A dificuldade na conciliação trabalho-família é um preditor de sofrimento psicológico nos profissionais de saúde e na população em geral, sendo um dos grandes desafios da organização das sociedades e merecedora também de abordagens inovadoras naquilo que tiver a ver com a planificação dos contingentes de pessoal e horários de trabalho na saúde.

Deveria haver quotas de género no acesso às universidades? Acho que não, mas aqui se mostra como as quotas poderiam estar em mais sítios do que nas listas de candidatos a deputado e deveriam considerar as faltas de homens. O que está errado, se induz seleção de género, é o método de avaliação de candidatos ao ensino superior e isso tem de ser maturado e melhorado, para impedir que um dia só haja médicas e enfermeiras. Mas também não se poderá, acima da competência, selecionar os candidatos a trabalhos na saúde pelo critério de género. Não é assunto fácil de resolver.

É verdade que a resiliência, entendida como a capacidade e o processo dinâmico de superar de um modo adaptativo o stress e a adversidade, mantendo simultaneamente um funcionamento psicológico e físico normais, é um fator importante, mas está lá de alguma maneira, podendo não ser igual para todas as pessoas, sendo que resiliência é diferente de resistência, qualidade que trabalhar num serviço de saúde também exige. Note-se que a Senhora Ministra o reconheceu – também disse que profissões da saúde “exigem uma grande capacidade de resistência, de enfrentar a pressão e o desgaste e temos que investir nisso”.

A resistência é exigida a um número enorme de pessoas com múltiplas tarefas e diferenciações profissionais diversas. Há uns dias, a propósito de outra coisa que eu tinha escrito, uma das pessoas incansáveis que faz a segurança de um dos edifícios do IPO lembrou-me que não nos deveríamos esquecer deles que passam horas seguidas em pé, controlando entradas e colaborando para o controlo da COVID-19. Enfrentam utentes que esperam na rua, agora com frio e antes com calor, a oportunidade de entrar nos edifícios do hospital. Como estão lá, a seu lado, auxiliares e assistentes, da portaria ao secretariado, resilientes que se fartam, resistentes até não poderem mais, a darem a cara pelo SNS e também em representação da Senhora Ministra da Saúde. Lembre-se Senhora Ministra, quem olha para nós, mesmo sem querer, olha para si, para o que nos dá, para o que nos tira, para o que nos pede e para o que nos exige, olha para nós e também vê as coisas de que nos acusa e os elogios de que se esquece.

A todos os que trabalham na saúde, independentemente de ser no público, privado ou social, devemos um agradecimento que nem sempre é feito. Senhora Ministra, lembre-se de nós, pense em todos aqueles que trabalhamos para a saúde, das ambulâncias aos cuidados primários, das urgências às consultas, dos laboratórios aos blocos operatórios, das enfermarias às unidades de cuidados de saúde, e comece, desde já, a refletir em como nos devem compensar pelo esforço, dar mais gratificação no trabalho e justificar a vontade de permanecer a trabalhar para a saúde, no SNS em especial “e temos que investir nisso”. “Temos” é um plural que envolve vários interessados, mas os mais importantes serão os que nos governam.

A grande lição de tudo isto é que para ser governante é preciso ser muito resiliente e, aos da saúde, pese embora não ser critério de seleção, a exigência é ainda maior do que para outros. Têm de ser capazes de ler, interpretar, avaliar e responder às críticas, ao que corre mal e menos bem. A frase mais importante da Dra. Marta Temido, a que ninguém ligou naquele dia aziago de respostas na Assembleia da República, foi a afirmação de que “a melhor forma de atrair recursos humanos é conquistá-los para projetos de trabalho e não passar uma imagem, ou intensificar uma imagem, de que a instituição vive enormes dificuldades e num clima de confronto”. Aqui, a Dra. Marta Temida está errada, rotundamente enganada. A melhor maneira de conquistar alguém não é mentir-lhe ou pedir para que colabore numa mentira que a prejudica. A verdade tem de ser pública. Nem tudo é tão bom quanto se julga, tal como nem tudo é generalizadamente mau. Mas é preciso conhecer os dois lados, o bom que se deve copiar e o mau que tem de ser corrigido. Conquistar para projetos de trabalho é difícil e complexo, envolve muitas formas de responder a anseios e motivações. Nenhuma dessas formas de captar, manter e satisfazer pessoal passa por calar as críticas ao que está mal. Quanto ao resto, medrar num momento de infelicidade expressiva, de alguém que está sob uma pressão inimaginável e nos deve merecer respeito, não adiantará nada.