Há um livro magnífico, publicado em 1963 pelo então crítico musical do New York Times, Harold C. Schonberg, intitulado The Great Pianists (Schonberg era igualmente amador de xadrez, sobre o qual também escreveu, além de ter coberto o match entre Spassky e Fischer em Reykjavik em 1972). É uma história da técnica de interpretação do piano, das grandes escolas no domínio e dos grandes pianistas sensivelmente até à data da sua edição (há uma segunda edição, actualizada, de 1987, que nunca li). Entre estes aparecem inúmeros personagens notáveis por uma razão ou outra. Um dos meus favoritos é o pianista russo Vladimir de Pachmann, nascido em Odessa no atribulado ano de 1848 e morto em Roma noutro atribulado ano, 1933.

Vladimir de Pachmann tinha por hábito ir aos recitais da sua mulher, também pianista, e, do fundo da sala, gritar Charmant! Magnifique! Brava! Não era a sua única particularidade. Exercitava os dedos ordenhando vacas, gabando a proficuidade do exercício. Usava um velhíssimo e muito sujo roupão que, tal como as peúgas, havia supostamente pertencido a Chopin, e suspeita-se que a sua roupa interior tinha a mesma proveniência. Quando ia a recitais de outros pianistas, era o terror. Levantava-se da cadeira a meio do recital e, como fez uma vez com o grande Godowsky, subia para o palco, para junto do piano, dizendo: “Não, não, deves tocar assim”. E tocava, exemplificando. (Há uma história ainda melhor com Busoni.) Obviamente, dizia das suas próprias interpretações que só um Deus podia tocar assim, uma opinião não partilhada pela maioria dos seus colegas e eventualmente por quem ouça as gravações que nos deixou.

Lembro-me muitas vezes de Pachmann, desde que li o livro de Schonberg, quando vejo pessoas tomadas de entusiasmo incontido por si mesmas ou pelas colectividades a que pertencem. Não é que, regra geral, sejam tão simpáticas como ele, ou igualmente talentosas, porque Pachmann pertencia àquele número de pessoas em que a propensão ao delírio e à mistificação convivem com um efectivo talento. Mas as operações alquímicas do espírito que conduzem à afirmação indisputável do génio próprio (ou colectivo) participam geralmente da mesma ausência de consciência do ridículo.

Agora que foi por um triz e três empates, por um processo de repescagem, que Portugal não foi afastado do Euro pela aliança inesperada de um Império Austro-Húngaro redivivo e de cerca de 320.000 guerreiros vindos do Norte, da terra onde Fischer e Spassky encenaram um dos últimos combates simbólicos da Guerra Fria, seria bom não esquecer as palavras de Marcelo sobre “os melhores”, em absoluto, “de todos nós” e os vários episódios da recente tournée francesa de Marcelo e Costa, com sorrisinhos e guarda-chuvas a dizerem, roçando o místico, a singular e única grandeza dos portugueses. Às vezes, apanho-me a pensar que já faltou menos para voltarmos ao tempo do apóstolo maior da “filosofia portuguesa”, Álvaro Ribeiro, e passar a ser corrente falar de um “modo português de atingir o conhecimento supranormal de uma realidade sobrenatural”. A novíssima “filosofia dos afectos” se calhar entronca aqui; em todo o caso, prolonga à sua maneira esse delírio. Comparado com isto, Pachmann a ensinar publicamente a Godowsky como se deve tocar piano é uma brincadeira de menino de coro. Até porque é possível imaginar em Pachmann uma auto-irrisão de que nem Marcelo nem Costa são capazes. Eles não têm consciência do ridículo, pura e simplesmente, e estamos no irracionalismo em estado puro. Ou, se a têm, falta-lhes em absoluto vergonha. Não sei qual das hipóteses é pior.

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Até porque o ridículo é neles instrumental para manter vivo o imperativo dos respectivos sonhos. O “sonho” é algo que ambos afeccionam particularmente. Que o sonho se possa tornar para os outros um pesadelo não parece incomodá-los grandemente. Deixemos o sonho de Marcelo de fora, até porque, envergonhando (e vê-lo como versão presidencial de um comentador desportivo, falando na “zona mista” sobre o que se passará no jogo com a Croácia, envergonha mesmo), não é em si imediatamente perigoso, pelo menos de um perigo urgente, e concentremo-nos no de Costa. De que tipo é ele? Parece ser o sonho de um Estado omnipresente. Não vale a pena fazer a lista exaustiva dos, aos meus olhos, óbvios sinais disso: basta pensar nas chamadas “reversões” (transportes públicos, etc.) ou nas recentes actividades do ministro da Educação. Ora, o problema com esse belo sonho é ele ser incompatível com a realidade. Este juízo é, na medida do possível, destituído de conotações ideológicas, não se funda em qualquer teoria do que a sociedade “deve ser”. Há vária gente que duvida da pertinência de falar de “realidade” nestes contextos. Mas há uma fórmula simples, que há muito Freud explicou com inteiro acerto, do meu ponto de vista: a realidade é o que nos põe em causa, que coloca obstáculos aos nossos desejos (na linguagem de Freud, à acção do inconsciente), aquilo que provoca a desagradável, e nalguns casos intolerável, correcção do comportamento ditado pelo princípio de prazer.

Essa correcção, por muito que se procure disfarçá-la, verifica-se aqui e ali. Mais uma vez, não é necessário fazer a lista de todas as más notícias económicas que nos chegam desde que este Governo tomou posse. São do domínio público e ninguém que não esteja de má-fé se pode permitir ignorá-las ou aceitar beatamente as explicações do Governo. Mas vale talvez a pena prestar alguma atenção a certos mecanismos de protecção do sonho postos em acção para esquivar a necessidade de ter em conta o princípio de realidade. Tomemos como exemplo dois, de que houve recente notícia: o secretismo e o silenciamento.

O secretismo, primeiro. Não me lembro de argumentos mais desconchavados do que aqueles que o PS (não só o PS, é verdade) utilizou para tentar evitar a criação de uma comissão de inquérito destinada a apurar as razões da complicada situação da Caixa Geral dos Depósitos. Em última análise, tudo se resumia a algo como “não se deve falar disso”. José Sócrates, como de costume, não se pôde impedir de pensar em si (já agora: deve ser muito cansativo viver assim) e decretou que o inquérito o tinha por quase exclusivo objecto. Mas melhor ainda foi o que disse um discípulo de Sócrates com indiscutível talento para a recomposição do mundo em função dos interesses partidários, João Galamba. Não percebia a intenção do PSD e do CDS. Então eles não estavam mesmo a ver que o inquérito, a ir em frente, chamuscaria esses dois partidos? Raras vezes se viu tanta franqueza como aqui. Ou desprezo pelo cidadão comum, que não se apaixona pelos conflitos partidários. Desconto a ameaça implícita, que é o menos importante. O que sobra é um belo exemplo da “ética republicana”: a busca pública da verdade que se lixe.

Agora o silenciamento. Há uma longa lista de expressas manifestações de desejo de silenciar jornalistas por parte de Costa e dos seus, que repete, de resto, o percurso socrático: o próprio Costa, antes de ser primeiro-ministro, a um jornalista do Expresso; os ataques furiosos de José Magalhães e outros, entre os quais Galamba, a José Rodrigues dos Santos; João Soares. Enfim, estes vêm imediatamente à cabeça, e provavelmente há vários outros exemplos que me passaram desapercebidos. Dir-se-á que é uma tendência natural nestas matérias por parte de quem está no Governo. Aceito perfeitamente. Mas, que me lembre, no Governo de quatro anos de Passos nunca ela adquiriu proporções equivalentes. E não se venha, por favor, com a história do telefonema de Miguel Relvas ou do marido de Maria Luís. O primeiro, porque Relvas foi imediatamente objecto de uma longa crucificação pública, o segundo porque, triste que seja, pouco tem a ver com a matéria discutida.

O último caso de apetite censório, silenciador e intolerante foi o de Gabriela Canavilhas, pianista e ex-ministra da Cultura de Sócrates. Como se sabe, apelou no Facebook ao despedimento de uma jornalista do Público, Clara Viana, que havia mencionado um número de pessoas presentes numa manifestação pela chamada “escola pública” do sindicato de Mário Nogueira que Gabriela Canavilhas não acreditava coincidir com o número que desejava. Haveria que discutir aqui o sentimento de propriedade que a esquerda sempre teve em relação ao Público, e que se manifesta (sempre se manifestou) de múltiplas maneiras e lhe suscita, ao mínimo desvio dos seus desejos, por raro que hoje em dia seja, indignações mais violentas do que as relativas, digamos, ao Correio da Manhã, mas não é aqui o lugar para isso. Depois dessa comunicação ao País, Gabriela Canavilhas fez mais algumas declarações curiosas, onde, se bem a percebi, além de dizer que não disse o que patentemente disse, se queixava da “formatação discursiva” a que se encontra submetido o discurso político e reivindicou improvavelmente para si o “humor” e a “espontaneidade”.

Não é verosímil que Gabriela Canavilhas traga numa sua malinha as peúgas de Vianna da Motta, de que é intérprete. Mas a falta de noção de ridículo é sem dúvida superior à de Pachmann. Humor? Espontaneidade? Volto à minha. Havia muito provavelmente no pianista russo uma espécie de auto-irrisão na construção da personagem que tinha criado para si. A pianista e deputada do PS Gabriela Canavilhas não parece ser dotada dessa capacidade. As suas gracinhas posteriores ao pedido de despedimento da jornalista, que versavam sobre uns bonequinhos utilizados na “rede”, um género certamente aprendido com Costa, não têm um milímetro de auto-irrisão ou, sequer, de graça. São, como as declarações de João Galamba, sinal de desprezo pelos portugueses que não pensam como ela, que não partilham o seu “sonho” político pessoal.

Vladimir de Pachmann interrompia por vezes os seus recitais para perguntar à audiência o que achava da maneira como estava a tocar. A pergunta era retórica, e ele próprio se encarregava imediatamente de responder. Tinha tocado pessimamente de forma voluntária e a partir daquele momento tocaria como só ele sabia tocar. Não acredito que Gabriela Canavilhas, pelo menos na sua encarnação política, pudesse dizer alguma coisa assim. Por uma razão simples. Em coisas políticas, o seu comportamento testemunha uma completa falta de originalidade: limita-se a repetir a linguagem da seita com o propósito exclusivo de defender a seita. Não pode dizer: agora sim, vão ver. Porque não tem em si nada de sequer vagamente original a dar a ver.

Quando, em nome do “sonho”, e para o proteger dos atritos com aquilo que o desmente, a malfazeja realidade (quem não gostar do nome, arranje outro), se recorre, por sistema, ao secretismo e às tentativas de silenciamento, algo vai muito mal. O ridículo, como tantas vezes em política, possui virtualidades monstruosas. Convém deixá-lo para o amor, onde muitas vezes faz bem e não se deve exageradamente temê-lo, pelo menos até uma certa idade. E algo de próximo acontece talvez com a arte. Por isso, a acabar: Viva Pachmann! Há domínios em que a ignorância do princípio de realidade, e a possibilidade concomitante do ridículo, podem perfeitamente ser permitidas a pessoas excepcionais. Em política, não.