Há pessoas assim. São raras, marcam um tempo, ficam-nos na memória, vivem para além da morte connosco pelas obras que deixam, vivem para além do seu tempo, deixam momentos inesquecíveis. São exemplo da dedicação de uma vida ao bem comum e da capacidade de juntar pessoas à sua volta para concretizar projetos. O Padre João Seabra é uma dessas pessoas que deixou marcas e obras que resistirão ao seu tempo.
O Colégio de São Tomás, a Capelania da Universidade Católica, o Movimento Comunhão e Libertação, a amizade que sempre cultivou por verdadeiros influencers (João César das Neves ou Aura Miguel), a revitalização das Paróquias moribundas da Baixa-Chiado (com o Padre Mário Rui Pedras e o Padre Armando Duarte), as Equipas de Casais, as férias dos jovens, a luta pela vida e contra o aborto ou a eutanásia, o trabalho académico do professor que gostava de ser, a renovação do Instituto de Direito Canónico da UCP e a sua notável tese de doutoramento, são apenas algumas das mais conhecidas Obras que deixou cheias de vida e de gente. Todas estas obras nunca dirigiu só, pelo contrário valorizou sempre quem lhes dava forma e o Padre João remetia-se ao serviço da Igreja e da Fé que dava sentido à sua vida de sacerdote.
Foi ele que trouxe para Portugal (não o primeiro) – mas o que conseguiu com sucesso trazer – o Movimento Comunhão e Libertação de Itália e implantá-lo. Sabia como poucos formar equipas de gente nova, jovens quadros que entusiasmava a pôr mãos à obra. Conservador, monárquico, rodeou-se de gente de enorme qualidade para concretizar os seus sonhos nesse claro rumo de fé.
George Weigel esclarece, sintetizando na biografia de João Paulo II, que a Comunhão e Libertação é a direita da Igreja romana, enquanto a Comunidade de Santo Egídio a esquerda. É simplista esta análise, mas permite perceber melhor esse movimento que nasceu durante o pontificado do Papa polaco e que o Padre João abraçou e deu vida em Portugal.
Rodeado de uma fantástica e entusiasta equipa de jovens quadros, professores e professoras excelentes, gente competente e dedicada, conservadora, mas moderna, pôs de pé o seu grande sonho: o Colégio de São Tomás, que nasceu em Sete Rios, pequeno e aconchegado, e que rapidamente cresceu para as Conchas e, mais tarde, para o Ramalhão.
Em muito poucos anos, essa incansável, alegre e competente equipa dirigida por ele e pela reitora Isabel Almeida e Brito juntaram à modernidade que transpira no Colégio alguns pilares educativos clássicos que fazem a diferença: a aprendizagem do latim para saber bem escrever português, da lógica para o raciocínio matemático e o treino da oratória em público. Mas não só. No São Tomás, é dada importância especial às artes, à aprendizagem de falar e argumentar em público nas Assembleias dos diversos anos, tudo acompanhado por uma óbvia formação católica, sem equívocos.
Não por acaso o São Tomás nasceu e em muito pouco tempo ganhou peso, sendo uma das escolas com melhores resultados do País. O desafio era grande, enorme: conseguir fazer uma escola da infantil ao 12.º ano que não assentasse em disciplina repressiva e asfixiante para os alunos, mas sem cedências bacocas à última moda dita “pedagógica” que fazem dos alunos meras marionetas de experiências falhadas e desastrosas. E nos pormenores percebe-se que o São Tomás é a sua “escola”: as viagens de fim de curso, por exemplo, não são a Benidorm, mas a Guimarães no 4.º ano, a Roma no 10.º e a Nova Yorque no 12.º. É isto…
Mas se o Colégio de São Tomás é a sua obra maior, o Padre João Seabra deixou sempre marcas de casa cheia nas paróquias por onde passou, de modernidade e juventude. Fez da Encarnação – antes uma velha igreja escura e triste – uma igreja cheia de gente, a maioria jovens, dos vários movimentos que o rodeavam para espanto da Baixa deserta de gente nova. No Chiado, tinha até um grupo de motoristas de táxi que paravam no Largo Camões, e que, frequentemente, ao passar, abordava e oferecia os seus préstimos de Padre.
A Comunhão e Libertação era a sua casa, a sua gente e a sua maneira de estar na vida. Nas férias com jovens, com famílias, vivia o sentido constante da sua vida pastoral. Tinha um particular gosto no Meeting anual do Movimento Comunhão e Libertação, na cidade Italiana de Rimini.
O Meeting tinha a qualidade e a diversidade de que ele tanto gostava. Por lá passaram sempre políticos europeus em conferências ou debates sobre os mais importantes temas políticos, na tradição dos grandes políticos católicos, como Schumann, fundadores da União Europeia, como gostava de lembrar. Por lá passaram e continuam a estar os mais diversos cardeais entre os quais se realça o Cardeal Scola, do próprio Movimento, um grande teólogo que foi arcebispo de Milão, Patriarca de Veneza e que foi o mais falado Cardeal europeu para suceder ao Papa Bento, quando o Papa Francisco foi eleito.
Por lá passaram João Paulo II, Ratzinger, Madre Teresa de Calcutá, mas também o presidente da República de Itália, deputados europeus, presidentes da Comissão europeia como Durão Barroso, e muitos outros. Por lá aconteciam anualmente exposições fabulosas organizadas em cooperação com os melhores museus mundiais; concertos, peças de teatro, e uma fantástica livraria de livros de e para católicos – em que um homem culto como o Padre João Seabra se revia como um dos organizadores e inspiradores respeitado e seguido. Trouxe o Meeting para Lisboa com uma equipa eficiente, na qual se destacou ele e a Sofia Gouveia Pereira e encheram o Campo Pequeno, ou a tenda do CCB.
Deixou marca inesquecível na Universidade Católica de que foi Capelão, o primeiro em dedicação exclusiva. Aí, criou iniciativas de jovens católicos ainda hoje do mais dinâmico e marcante. A juventude e a sua formação acompanharam sempre a sua vida.
Deu um dinamismo ao Instituto Superior de Direito Canónico que veio a ser determinante para a Igreja em Portugal, mas também nos países de língua portuguesa. Foi criada por sua iniciativa, em todos os outros cursos da Universidade Católica, uma disciplina de Cristianismo e Cultura, que ainda hoje subsiste.
Era sempre surpreendente e levava a vida e a sua Missão com alegria e divertimento. Tinha segredos insondáveis. Em Fátima, organizava peregrinações anuais de alunos da Católica e todos sabiam que se encontravam no segundo candeeiro da direita a contar da Capelinha. Antigos e novos alunos da UCP.
A sua tese de doutoramento apresentada na Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma, foi um dos importantes estudos sobre a igreja e o poder político em Portugal. A tese que estuda e documenta os tempos terríveis vividos pela Igreja no tempo da I República, nomeadamente a Lei da Separação de 1911, é de uma enorme atualidade. A síntese da tese deu origem ao seu livro “Estado e a Igreja em Portugal no Início do Século XX”.
O Padre João Seabra nunca se deixou levar pelo ativismo necessário a que as Obras nasçam, cresçam e fiquem como polos importantes na sociedade. Sabia encontrar as pessoas certas e ficar a seu lado, com as necessidades espirituais de cada uma. Rigoroso, exigente, discreto, deixando os outros fazer e encontrar os caminhos. Não era um capataz, ou um empreiteiro, um assistente social. Era um sacerdote que dava sentido e qualidade às obras com que sonhava, mas também obras sociais de causas que acarinhava particularmente. Apoiou sempre o Vale de Acór do padre Pedro Quintela, para jovens em fim de linha da droga e da vida. Acarinhou, incentivou as obras que tinham a ver com sua luta em defesa da vida. Casa de Apoio a mulheres grávidas criada pela sua irmã, a Ajuda de Berço para bebés e crianças dirigida pela Sandra Anastácio, a Maria de Jesus Pinheiro Torres e a Madalena Maymone Martins entre outras.
O Padre João Seabra e eu estivemos do lado contrário da barricada, nomeadamente no tempo quente do PREC, ou no que diz respeito ao aborto, nos anos 80. Temível opositor. O direito à vida foi uma grande batalha da sua vida. Deu a cara, com coragem e frontalidade, sem ambiguidades e desculpas escondidas pelas causas identitárias dos valores do cristianismo. Recebeu-me de braços abertos quando em 1988 saí do PCP. Deu-me a honra e o gosto da sua amizade.
Um dia, na véspera de umas eleições europeias, tomámos um café na Baixa, ele a caminho da Igreja da Encarnação e eu a caminho da Editora. Queixava-me que os candidatos dos vários partidos que faziam parte das listas não me entusiasmavam e hesitava em quem votar. Respondeu-me então prontamente: “Se eu votasse exclusivamente em quem gosto, tinha de se candidatar um Habsburgo… Assim, decido sempre com facilidade: voto no mal menor.”
Era monárquico, claro.