Uma campanha eleitoral é sempre inesquecível e quem as vive sabe que é um dos momentos mais exigentes e divertidos da vida e da memória de um político.

Tenho muitas recordações de campanhas eleitorais, e sempre gostei de as fazer, mas há uma, em 1980, que jamais esquecerei e que recordo com especial carinho, pela imaginação, pelas pessoas envolvidas a percorrer o país, pela qualidade do que fizemos em conjunto e as memórias que ficaram.

Em 1980 o PCP concorria juntamente com o MDP/CDE na APU pela segunda vez, depois de ter enterrado a FEPU. A campanha anunciava-se difícil, porque iria decorrer depois de um ano de governação da AD e com os socialistas unidos numa frente a que tinham chamado FRS – Frente Socialista e Republicana.

Fiz parte da direcção da campanha eleitoral e era necessário fazer algo de extraordinário que pusesse a APU na boca de toda a gente. Ninguém melhor que o José Carlos Ary dos Santos para fazer propostas e dar sugestões, que seriam inimagináveis para qualquer outra pessoa. Não em vão. Era poeta e trabalhava em publicidade.

Reuni com ele em sua casa, na rua da Saudade, onde se põe um cotovelo no Castelo. E ele fez uma sugestão de imediato: organizarmos um espectáculo com diversos cantores conhecidos, simpatizantes do PCP.

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Deu-lhe de imediato um nome genial: APUteose!

Passados uns dias, já tinha convidado e tinham aceite o Carlos do Carmo, o Paulo de Carvalho e o Carlos Mendes. Sempre a partir da rua da Saudade, planeámos tudo. Eles cantavam e eu faria um breve discurso no começo do espectáculo. Já com a colaboração de todos, organizou-se o espectáculo e o primeiro foi no Largo de Camões em Lisboa. O largo estava cheio de gente para os ouvir e as janelas cheias de pessoas para ver melhor.

No início do espectáculo, os cantores entravam em palco, um de cada vez, fazendo uma brincadeira que deixava o povo em apoteose de imediato: o Paulo de Carvalho entrava a cantar a Amélia , o Carlos Mendes a cantar  uma conhecida canção do Carlos do Carmo e o Carlos do Carmo a cantar… a Nini!

Depois, os três em palco cantavam, então, sim, as suas músicas e, por vezes, os três acompanhavam-se. Foi um enorme sucesso. Claro que eu discursava antes de eles cantarem a apelar ao voto na APU.

Começámos no Largo de Camões e com alguns percalços. Um telefonema para a polícia garantia que era necessário esvaziar o largo porque alguém tinha colocado uma bomba. Veio o comandante da PSP de Lisboa avisar o José Casanova, que me disse a mim. Com o largo e ruas perto à cunha, decidimos acabar o espectáculo e esvaziar o local o mais rápido possível. Avisámos o Carlos do Carmo, o espectáculo acabou serenamente e saíram de imediato para o povo sair também. À saída, o Largo de Camões ficou sem electricidade. Não fez grande diferença, tínhamos acabado.

De seguida, o APUteose seguiu para vários pontos do País: lembro-me do pavilhão da Amadora a abarrotar e de todos a cantar com eles, de Faro, Aveiro, Porto, entre outros locais.

Cartaz de um dos espectáculos APUteose, realizado em Arroios, em Lisboa (©Ephemera)

As salas estiveram sempre cheias de gente, gente alegre, cantando em uníssono, batendo palmas e pedindo autógrafos, que eles davam com grande paciência. No fim, ainda soavam as palmas que recebíamos: a votação na APU foi má, o PS perdeu as eleições e a AD ganhou-as.

Só quem nunca fez campanhas eleitorais é que não sabe que as melhores campanhas têm resultados péssimos.

Depois das eleições, fazia-se sempre uma recepção de agradecimento a todos os que participavam e ajudavam sem serem militantes. Aparecia Álvaro Cunhal a cumprimentar e a falar com cada um e fazia o simpático discurso de agradecimento, em que explicava que, perdendo, tínhamos ganho.

Carlos do Carmo queria muito conhecer Álvaro Cunhal, o Paulo e o Carlos Mendes também. O Ary era da casa, embora não pudesse ser militante comunista, por ser homossexual. Os outros eram simpatizantes, “compagnons de route”, como classificavam.

Cunhal agradeceu e falou com cada um. Lembro-me da comoção do Carlos do Carmo que ficou com a voz embargada, como acontece quando se fala a primeira vez com alguém que se considera um mito, ou com um ídolo que nos parece irreal.

Eu também me tinha emocionado, quando o Ary disse que o Carlos do Carmo tinha aceite vir para a campanha. Ele e o Paulo de Carvalho e o Carlos Mendes.

Fiz muitas campanhas eleitorais mas esta é única e inigualável na minha memória, como era certamente para Carlos do Carmo. O Ary, esse, divertia-se sempre e de tudo na vida.