Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento…

Assim principiava o poeta e pintor Ângelo de Lima um soneto seu, apresentado na revista Orpheu em 1915. O artista, à data, contava já com várias passagens por manicómios, inclusive no Centro Hospitalar Conde de Ferreira, onde, devido a distúrbios psíquicos então arrumados como “delírio de perseguição”, entre outros, fora internado em 1894.

Tendo passado grande parte da sua vida internado, nessa e noutras instituições (viria mais tarde a ser diagnosticado como “inimputável” e “alienado”), Ângelo de Lima escrevera, possivelmente, essas confessionais palavras na abismal vertigem da loucura. Num momento de folga da delirante condição que lhe desconstruía a realidade; uma gazeta lúcida disposta a tolerar o vislumbre de um estado aprisionante da cognição, do pensamento.

Hoje, manifesta-se-me igualmente como uma espécie de loucura o tão forte desígnio jacobino de muitos em castrar o pensamento de alguns. A belicosa franja do politicamente correto tem-se notabilizado com um novo, mas não inovador, jeito de cercear a liberdade, moldando-a de forma a que se apresente conforme a ortodoxia do escultor: a cultura de cancelamento em todo o seu esplendor, sob o mote “vim, vi, cancelei”.

O fenómeno tem sido mais visível nos Estados Unidos, onde a corrente teve origem. Os exemplos abundam, insuflando o ritmo crescente da própria abundância. Um caso recente deu-se com o músico Ariel Pink, que participou pacificamente (segundo o próprio) numa manifestação pró-Trump em janeiro. Como resultado, viu a sua editora romper o contrato discográfico.

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Felizmente, surgem vozes mediáticas contrárias ao cancelamento, como a do músico Nick Cave, que considera o politicamente correto a “religião mais infeliz do mundo”. Sem dúvida que Nick Cave é um artista que merece ser ouvido; talvez se o deva também escutar. Temos ainda Ricky Gervais, o brilhante humorista, criador de séries como After Life e The Office. Em relação à última, o mesmo põe em causa a exequibilidade do seu lançamento, acaso vivêssemos então um clima semelhante ao atual. A crítica à cultura de cancelamento poderia muito bem terminar por aqui: imagine-se um mundo sem a hilaridade irreverente de The Office!

De resto, é curioso que o universo da cultura, das artes, se tenha rendido com tanta facilidade ao politicamente correto e inerente açaime que amordaça a criatividade. Ou até a própria realidade, tal como no caso das quotas étnicas e raciais (medonha expressão) que serão impostas nos Óscares a partir de 2024. Será que a próxima expressão de contracultura assentará numa reatividade face ao cancelamento?

O influxo censório progride, também em Portugal, encrespando-se a maré, agora, pela remoção dos brasões florais dos jardins da Praça do Império que aludem às antigas colónias portuguesas. A polémica desenrola-se de acordo com os trâmites usuais: um suspeito desmentido de Fernando Medina, uma petição que desdiz o desmentido (entretanto confirmado com fotografias do local, ao que parece) e até a refrescante intervenção do general Ramalho Eanes.

O ataque ao passado, com o violento e extemporâneo intuito de o corrigir, é o instrumento, por excelência, deste movimento: lembre-se a vandalização de estátuas que proliferou durante 2020, incluindo a do padre António Vieira. Parece existir aqui uma componente psíquica tóxica, uma tentativa neurótica de precipitação sobre o que se revê como insucesso e vergonha de antanho. Uma depressividade coletiva que torna a relação com o objeto à disposição de todos – o presente – doentia, extensivamente revisionista e desconstrutiva, cuja cura erroneamente se mede pela muito aguardada e idealizante construção de um futuro redentor, apagados todos os opróbrios dos nossos antepassados. Uma mentalidade coletiva deprimida que não consegue deixar de olhar com torpeza para o passado.

É irónico que a cultura de cancelamento esteja intrinsecamente aliada a filosofias políticas e socioeconómicas que foram, sucessivamente, derrotadas ao longa da e pela História. Irónico, mas indispensável. Dá a entender que tudo isto é a vingança do mau perdedor, do perdedor infantil, que, impossibilitado de trazer à discussão exemplos reais (não aqueles que fecundamente se reproduzem nesse utópico Monte Olimpo marxista-leninista e/ou maoísta) do sucesso dos seus dogmas, ocupa-se agora a destruir gostos e visões que lhe não agradam. A impor, inclusive, a sua mundividência. Se necessário, porque a “luta continua”, até a impor um halo de vitimização a quem pode não o sentir.

A título de curiosidade, dever-se-ia perguntar aos canceladores (tristemente, em sua larga maioria jovens) qual o próximo passo deste purgante processo. Imagine-se cancelado tudo o que consideram ofensivo, derrubadas as estátuas que evocam a vergonha do passado, e depois? Cancelar-se-á também a obra dessas figuras, como a do padre António Vieira? Amputada a História da autoridade que a tradição e o passado emanam para o futuro, e para o qual constroem pontos de ligação, que caminhos percorrer para o que há-de vir? A página em branco é algo tentador e entusiasmante como meio, todavia esgota-se como fim se vier acompanhada de um plano, também ele, em branco.

Talvez se deva assegurar, e reassegurar, aos inquisidores que a escolha não está polarizada entre “aceitar” e “cancelar”. O oposto da cultura de cancelamento não é uma aceitação cega, mas o de uma visão e apreciação crítica. Seria suficiente? Não creio.

P.S.: O título da crónica imita não só o do mencionado poema, mas também o do documentário de Jorge Pelicano, acompanhando as três semanas que o ator Miguel Borges passou no Centro Hospitalar Conde de Ferreira. Aconselho!