Passos Coelho “voltou”. E, como sempre que Passos “volta”, o país agitou-se muito; uns por forte repulsa, outros de incontida satisfação, convencidos que ele voltou mesmo. Eu estou no terceiro grupo; o dos prudentes, que se agitam pouco, mas que gostam sempre de o ver reaparecer. Mas com uma adversativa. Não uma adversativa dirigida a Passos, mas uma adversativa ao discurso que dali se poderá, com grande risco de insustentabilidade e maior de tentação, erigir.

Flaubert, um dos poucos franceses a que vale a pena voltar, escreveu, num texto reunido em Carnets et projets: correspondance 1878-1880, que “a recordação é a esperança do avesso. Olha-se para o fundo do poço como se olhou para o alto da torre”. Estarão as coisas boas irremediavelmente no passado, perdidas no fundo do poço? Estaremos condenados a um presente nostálgico, ansioso, sobressaltado e miserável? Restar-nos-á apenas uma vida feita lápide tumular: com eterna saudade?

As saudades dos festivais de Verão, da música, dos corpos quentes e da cerveja gelada? Dos beijos e dos abraços esbanjados entre amigos e promessas de amor? Das noites, dos bares, das discotecas? Dos almoços em dias úteis, com gente lá do escritório? Dos fins de semana relaxados, entre amores e amigos? Dos toques?

Pior: não só saudades do vivido. Também saudades do sonhado.

Teremos perdido a ânsia de futuro? Condenados a já não acreditar nos sonhos de futuro que outrora tivemos? A abandonar os sonhos da universidade, com tanto ainda por explorar? Das férias com os amigos, que “este ano é que vão ser”? Do carro novo, que este já dá tantos problemas? Da casa nova com a sala virada a sudoeste, a varanda e o escritório, que o banco vai financiar? Do emprego novo e os recomeços que entusiasmam tanto? Do tempo em que os velhos acreditavam que, finalmente, iam ver os mais novos chegarem onde eles não chegaram? Do negócio, que agora é que vai mesmo arrancar? Da promoção e do prémio, que vão dar tanto jeito? Do empréstimo que está quase pago? Ou, finalmente, daquela ida à Ópera Garnier e o descanso num café em Saint-Germain-de-Prés, com os miúdos em casa entregues aos avós?

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E, pelo caminho, abandonámos também a expectativa do que é normal? O respeito pela dignidade do presente?

A consulta atempada? A maleita curada a tempo? Os exames dos miúdos que lhes dão tanto trabalho e a recompensa pelo resultado que nos dá mais gozo a nós do que a eles? Ir trabalhar ao escritório, não de carro, mas de transportes públicos que funcionam bem e a horas, sentados e a ler finalmente aquele romance?

É certo que as saudades do vivido têm muito a ver com esta neblina doentia da Covid-19, mas as saudades do sonhado, a falta de perspectiva de futuro e a perda de dignidade do presente, ah, essas têm tudo a ver com o mais incompetente Governo dos últimos 40 anos, ainda em funções. E é por isso que Passos – Passos e não outro – agita tanto o país.

Passos fez, num raro discurso escrito, um diagnóstico certeiro do país. Um diagnóstico de um país sem brilho, sem esperança e cada vez mais perdido no fundo do poço. Com o desassombro de quem não está para fazer favores a ninguém, e com a autoridade moral de quem tirou a troika daqui para fora mais cedo do que o previsto, de quem reduziu o défice de 11% para 3% em quatro anos, de quem pôs a economia a crescer e de quem pôs o desemprego a descer.

O país precisa disso? Claro. O país precisa dessa lucidez, dessa franqueza, desse abanão. Desse gesto definitivo que o arranque do torpor dos vencidos. Mas a recordação da bancarrota, da troika, dos esforços em vão empreendidos, dos anos de desperdício, não bastam como projecto de futuro. Não bastam ao país e não servem à direita. E é aqui que entra a minha adversativa. Não basta acordar do torpor dos vencidos se não nos levantarmos para os desígnios dos vencedores. É verdade que, nalguns momentos da vida, o repúdio é galvanizador suficiente para a mudança; mas a ausência de uma ideia de futuro, de um projecto aspiracional, essencial para o caminho, é fatal para o dia seguinte.

O PS é, sabemo-lo bem – não há número que não o confirme; da saúde à educação, das finanças públicas ao investimento -, o responsável por esta modorra em que Portugal vai fenecendo. Mas a maior armadilha em que a direita pode cair é ser apenas o projecto anti-PS; a faxineira de serviço dos desvarios, desmandos e demagogias socialistas. Fazê-lo, será jogar o jogo do PS; deixar que seja ele o pivot inamovível da vida política nacional. Um país condenado a viver, à vez, entre ciclos socialistas e ciclos de austeridade anti-socialistas.

E a adversativa tem tudo a ver com a esperança. Porque se a “recordação é a esperança do avesso”, é agora tempo de recuperar a esperança e colocar a recordação do avesso. De apresentar um projecto mobilizador da sociedade portuguesa que não se limite à expressão de valores políticos de repúdio, mas de empatia. É tempo de apresentar um projecto que defina metas e caminhos para o combate à pobreza e desigualdade, porque, uma vez mais, face ao que aí vem, tendo em conta o que tem sido, é esse o combate urgente; um projecto que crie condições – designadamente por via da educação, da formação profissional e da legislação laboral – para as adaptações do emprego aos desafios da nova economia, porque é esse o combate fundamental; um projecto que proceda a uma reforma fiscal e uma simplificação administrativa que permita salários mais altos, mais investimento e menos despesa pública, porque é esse o combate eternamente adiado; um projecto que promova sinergias entre os diversos sectores – público, privado e solidário – para melhores respostas na educação, na saúde, e nos apoios aos não activos, porque é esse o combate da sensatez.

Esperança. Não rancor, nem repúdio. Esperança é o que os portugueses esperam de uma alternativa de centro-direita ao PS. E o Ano Novo é um óptimo momento para o lembrar. Feliz 2021.